Até meados da primeira década do século 20, a palavra carro não tinha, na Paraíba, o significado que comumente tem hoje. Carros era...

Quando o automóvel chegou à Paraíba

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Até meados da primeira década do século 20, a palavra carro não tinha, na Paraíba, o significado que comumente tem hoje. Carros eram cabriolés e caleches, de duas e de quatro rodas, puxados por cavalos e que pertenciam a pessoas abastadas. A administração estadual também possuía os seus veículos. Em outubro de 1903, o presidente José Peregrino comunicava à Assembleia que o carro do palácio encontrava-se “bastante estragado e reclamando frequentes concertos que exigem não pequena despeza [...] fiz encomenda de um outro que no decurso deste mez deverá chegar da
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José Peregrino (1840-1913) ▪ Fonte: FamSearch
Europa a esta capital, transportado por um dos vapores que costumam frequentar o porto de Cabedello”. A situação, ao que parece, foi resolvida porque, segundo o historiador Celso Mariz, “em 1905, o palácio do governo tinha dois bons carros”, um dos quais era puxado por “dois belos cavalos”. Para o transporte de cargas, nas palavras de Mariz, “a carroça puxada a burro ainda era o que havia de mais moderno”.

Naquela época existia, há algum tempo, da mesma forma que ocorre atualmente, um comércio para os carros, conforme se observa em anúncio publicado, em outubro de 1895, em A União: “Vende-se um elegante carro de 4 rodas com molas inglesas muito brandas e de volta, para um só cavallo”. O aluguel de carros também era praticado, como se vê em outro anúncio publicado, em fevereiro de 1896, em A União:

“Carros de Aluguer – Epiphanio da Cunha Cerqueira tem carros para aluguer, não só para passeio n’esta capital e suburbios, como para viagens mais longas e á localidades, cujas estradas não embaracem o trajecto dos mesmos carros. Pode ser procurado para os misteres do seo negocio á rua Maciel Pinheiro nº 190”
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GD
Também eram chamados de carros, naquele tempo, os bondinhos de dezesseis lugares da empresa Ferro Carril que os burros transportavam em duas linhas, Trincheiras e Tambiá. A empresa Ferro Carril Parahybana, que foi a primeira iniciativa de transporte público na capital do Estado, é um empreendimento meio relegado pela nossa historiografia. A companhia foi criada por um grupo de comerciantes da cidade, liderados pelo judeu francês Aron Cahn, que fixara residência na Paraíba ainda jovem e se tornaria, segundo Walfredo Rodriguez, “a viga mestra do comércio exportador de algodão e produtos regionais”. Embora o governo estadual tivesse participação acionária na empresa (250 ações),
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não era o acionista majoritário, considerando que havia uma ampla participação da sociedade local na companhia. Dentre os 124 acionistas iniciais estavam, entre outros, o padre Walfredo Leal (25 ações), o Desembargador Trindade (20) e o jornalista Arthur Achiles (5 ações).

Sob a presidência de Aron Cahn, a Ferro Carril encomendou a fornecedores alemães, trilhos, troles e acessórios para o funcionamento da empresa cujas linhas foram inauguradas de forma provisória em junho de 1896. Em 1899, uma Assembleia dos acionistas deliberou vender ou arrendar a empresa. Naquele momento, a Ferro Carril tinha “approximadamente 7 killometros de trilhos em perfeito estado [...] sentados a maior parte em ruas calçadas”. A empresa possuía, na ocasião, “6 carros de passageiros em serviço, 2 ditos em concerto, 2 ditos de bagagem, 2 trollys”. A Ferro Carril Parahybana acabou sendo encampada, anos depois, pelo governo estadual.

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Bondes com tração animal trafegam na Rua Direita, Parahyba do Norte @jpantiga
Como acontece até hoje com as empresas que operam o transporte público urbano nas cidades brasileiras, a Ferro Carril também não escapou das críticas feitas pelos seus usuários durante o tempo em que operou as linhas de bondes na capital da Paraíba, o que pode se constatar em notícia publicada, em 1908, no jornal O Norte relatando uma melhoria no serviço prestado quando de uma mudança que ocorreu na administração da empresa. Da matéria, tem-se uma ideia do tratamento cruel que sofriam, naquela época, os animais que puxavam os bondes:

“Nota-se, porem, maior regularidade no horário, asseio nos carros, ausência completa dos pregos e a engorda dos burros que, até ha bem pouco tempo, estavam transformados em verdadeiros esqueletos, todos cortados de chicotes, feridas sangrentas abertas, a causarem repugnancia e dó aos passageiros. Agora, não, os burros, mais bem alimentados, não caminham mais sob o latego impiedoso do automedonte. Observa-se mesmo que os animaes fazem o serviço com certa desenvoltura e satisfação”

Ao se aproximar do final da primeira década do século passado, o francês Paul Walle, ao visitar a capital da Paraíba, descreveu em livro as suas impressões sobre a cidade que no seu relato tinha apenas algumas ruas “iluminadas com lampiões a óleo, presos a colunas ou postes de madeira, lampiões esses que
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não são acesos nas noites de luar”. Não havia, nas suas palavras, “canalização de esgotos ou serviço de água potável” e, com relação ao transporte urbano, Walle escreveu que “linhas de bonde de tração animal existem entre a cidade e os arrabaldes de Trincheiras e Tambiá”. Foi essa a cidade que, em meados de 1908, viu chegar, desembarcado no porto de Cabedelo, o primeiro automóvel da Paraíba.

O automóvel, ou um carro de autopropulsão como era então chamado, fora adquirido pelo comerciante de estivas Francisco Vergara que residia em Santa Rita e, segundo Celso Mariz, “era um excelente ‘Bayard’, guiado por Anunciato que é, assim, o nosso decano do volante. Anunciato foi aprender o ofício em Recife, onde havia uns três ou quatro autos”. Ao ser ler uma notícia publicada, em novembro de 1908, no jornal O Norte tem-se a impressão de que não teria sido satisfatório aquele aprendizado de Anunciato no Recife mencionado por Celso Mariz:

“Por um triz... – Antonio Vieira de Lima, talhador de peixe no Mercado, homem morigerado e já edoso, por milagre não foi hontem victima do automóvel existente nesta cidade. No trajecto do porto para a ponte do Sanhauá, seguia o automóvel sem apitar e com grande celeridade. Vendo Antonio de Lima na frente, o machinista não apitou, naturalmente por perversidade, apanhando o vehiculo, de raspão, a perna direita daquelle popular. Este, felizmente, nada soffreu, a não ser o susto que foi grande e com razão. Trouxe porem sua queixa a esta folha, dizendo que apezar de ser pobre não está disposto a ser morto por qualquer quidam que possua um automóvel e se julgue no direito de esmagar os transeuntes”
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Meses depois, o primeiro automóvel da Paraíba e o seu “machinista” se envolveriam em outro episódio que, desta vez, teve consequências trágicas, conforme matéria publicada, em 22 de junho de 1909, no jornal O Norte:

“Uma scena horrível foi presenciada hontem, a tarde, na estrada de rodagem parallela a linha férrea perto da ponte de Sanhauá [...] o automóvel do sr. Francisco Vergara seguia alli em velocidade quando deparou com uma creança [...] Com o deslocamento do ar produzido pela marcha do auto [...] a creança era derrubada pelo vehiculo, ficando com o craneo fracturado. Ahi é que o machinista deu provas de negligencia ou de maldade. Em vez de parar o vehiculo e socorrer a infeliz victima do sinistro, prosseguio na velocidade, arrastando o corpo, já cadaver, até a ponte de Sanhauá [...] O machinista, que se chama Annunciato Lucas, até hontem a noite não havia apparecido na policia”

A criança morta no acidente, que se chamava Amélia, foi a primeira vítima do tráfego de automóveis em terras paraibanas. Em setembro daquele mesmo ano, o motorista causador do desastre foi pronunciado pela justiça como incurso em artigo do Código Penal. Mas, “o réo prestou fiança, recorrendo da pronuncia”, noticiou
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um jornal da época. Nada muito diferente do que ocorre hoje, mais de um século depois.

Após o Bayard de Francisco Vergara, toma-se conhecimento dos próximos carros que chegaram à Paraíba através de Celso Mariz, no seu valioso livro Evolução Econômica da Paraíba:

“Logo após veio um caminhão curto, de velocidade relativa e grande barulho, comprado pelo negociante Manuel Garcia de Castro [...] Em 1913 João Vergara fundou a garage Londres com um Adler, um Berliez e um Bayard. Do governo o primeiro auto foi um Austin do cel. Mario Barbedo, comandante da Polícia, que o trouxera do Rio, de segunda mão. Este carrinho enfraqueceu cedo em nossas ladeiras. O presidente de Estado que primeiro adquiriu automóvel para o serviço oficial de Palácio foi o dr. Camilo de Holanda, em 1916”

Os carros de “autopropulsão” ainda demorariam a chegar ao interior do Estado. Ainda segundo Celso Mariz:

“Pelo interior, a esse tempo, nada ainda. Em 1917, o senhor de engenho Gentil Lins, de Pacatuba adquiriu um Ford, o primeiro da marca importado na Paraíba. Ficou algum tempo de trânsito circunscrito à várzea e à capital. Para Norte, Sul e poente, os caminhos não facilitavam”
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Mariz também descreveu a epopeia das primeiras viagens pelos sertões do Estado:

“A primeira viagem no planalto da Borborema foi empreendida em 1918 em um daqueles carros da garage Londres. Arrojaram-se a isso o proprietário João Vergara, farmacêutico Manuel Soares Londres e drs. Francisco Seráfico e Gouveia Nóbrega. Foram até Taperoá, mas embarcando o carro no trem até Campina. Foi um escândalo, um susto, um mistério para certos grupos da população. Os excursionistas subiram por Soledade e voltaram por Timbaúba e Boa Vista. Eles mesmos, aqui, acolá, removendo, com instrumentos que conduziam, tocos, pedras, depressões.

Por esse mesmo processo foi feita a descida da serra em 1918 pelo negociante da cidade de Sousa, Emídio Sarmento de Sá. Esta nova aventura foi num Ford adquirido em Recife [...] Guiava o carro o chaufeur Rubens Cavalcanti pela velha estrada de tropeiros que desce a serra e atravessa os sertões baixos até aquela cidade do Piranhas. Foi nova assombração no interior”
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Pouco a pouco, o então também chamado “carro automovel” foi se incorporando à vida dos paraibanos. Em 1911, a mensagem à Assembleia estadual do presidente João Machado continha um capítulo denominado “Dos Carros Automoveis. Sua necessidade”, no qual o governante exaltava as vantagens do novo veículo:

“O que ha a considerar no automovel é a vantagem da economia de tempo, a facilidade do transporte, onde se quer e quando se quer, com rapidez. O automovel fará o trabalho em menos tempo que o cavallo mais ligeiro,
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sendo a distancia curta, e quanto for maior a distancia tanto maior também será a economia de tempo.

O carro automovel é hoje o carro de passeio o mais seguro, o carro de transporte o mais commodo, o mais rápido e a evolução da industria e da sciencia abrem-lhe, cada dia, novas direcções imprevistas. A missão do carro automovel é de transportar o peso o maior possível, com segurança maxima e a economia a mais forte que se póde realizar”

Quando, em 1939, Celso Mariz concluiu Evolução Econômica da Paraíba já existiam no Estado “cerca de dois mil veículos de auto-propulsão”. De lá pra cá, o crescimento foi imenso. Atualmente, em razão da precariedade do transporte coletivo público em algumas cidades paraibanas, nas horas de maior movimento o elevado número de automóveis no trânsito chega a tornar a vida dos seus habitantes quase insuportável.

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  1. Mais um ótimo texto, sobre um tema muito interessante. Parabéns 👏🏽👏🏽👏🏽.

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  2. Parabéns Flávio, você tem nos premiado com textos históricos magnificos, este sobre a historia dos primeiros veiculos a motor na Paraíba, está brilho.

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  3. Jose Mario Espinola16/2/25 08:55

    Flávio Brito nos oferece mais um histórico e revelador café da manhã de domingo.
    Desta vez a origem do trânsito infernal nas nossas ruas!

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  4. Oi Boa tarde que história bonita de ler. Eu hoje aos meus 49 anos nunca imaginaria ler uma história dessa . Celso Mariz meu xara Parabéns e muito obrigado em compartilhar essa história.

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