Nicanor, de quem estamos falando, era um homão de quase 2 metros na estatura e na brabeza. Pensem num homem bravo. Pois essa criatura...

As duas mortes do tabelião Nicanor

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Nicanor, de quem estamos falando, era um homão de quase 2 metros na estatura e na brabeza. Pensem num homem bravo. Pois essa criatura era o Nicanor. O que tinha de tamanho e braveza, tinha de conservador nos modos e nos pensamentos. Não gostava dessas modernidades de redes sociais. No celular utilizava o básico: ligar e atender. Nada de recorrer a aplicativos para o que quer que fosse. Há décadas o barbeiro era o mesmo e também o alfaiate. No cartório só assinava a papelada com caneta-tinteiro. Trabalhava engravatado e algumas vezes comparecia na repartição de suspensório e gravata borboleta. Em dias de aguaceiro não dispensava
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as galochas e mesmo em noites de estio não abria mão dos pijamas. Ao se recolher, depois dos folhetins da TV, rezava o terço e ia para os lençóis, deixando sob a cama suas pantufas ordenadamente dispostas uma ao lado da outra.

Era casado com Dolores quando se deu o fato que vamos relatar. Ele já era cinquentão há meia dúzia de primaveras, enquanto Dolores passara um tiquinho dos quarenta. Para ele, ela era a Dô e para ela, o nosso tabelião era o Ni. Assim, Ni e Dô iam levando a vida como Deus queria. Um casal de filhos já formados estavam pelo mundo e cada um deles cuidando de si.

Enquanto Ni era do jeito que já falamos, Dô era extrovertida, gostava de uma prosa e nada de ser carrancuda como o marido. De uns tempos para cá, Ni andara falhando no quesito “comparecer”, se é que estão me entendendo. Já não procurava Dô, como nos primeiros tempos, e na hora em que se recolhiam era um tal de Ni virar para o lado e pegar no ronco
enquanto a outra metade da laranja era só vontades.

Então, era de se esperar que, vez ou outra, alguns pensamentos povoassem a cabeça de Dolores, pois vejam só. Casa própria, carro do ano na garagem. Renda graúda de três imóveis que rendiam uma receita considerável. Ela poderia viver muito bem só, mas dividir tudo aquilo numa separação não seria bom negócio. Mas há algo a se acrescentar: Ni era prevenido e fizera pelo menos três seguros de vida e daqueles bem generosos.

Há um detalhe que não pode ser descartado. Dô, ainda que — como já dissemos — estivesse um pouco além dos quarenta, tinha lá sua belezura e quentura de uma mocetona de vinte. Olhava de esguelha para o rapagão que vinha cuidar da piscina. Não tirava o olho do vizinho de frente, um oficial da PM. Mais um e outro artista da televisão chegava nas noites insones para acender as vontades de Dolores. Mas parava por aí.

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Até que numa noitinha, Nicanor assistia o jornal da TV, já no seu pijama, quando caiu durinho da silva. Dolores ainda gritou; “ Ni, Ni, Ni…”. Mas Ni, nada.

Foi o compadre Bernardino, dono da funerária Caminho do Céu, que cuidou de tudo. Horas depois, lá estava Nicanor no seu pijama, só que agora de madeira. Muito choro e muita reza. Quando Dona Porfíria ia puxar oração em louvor ao defunto, percebeu que o algodão no nariz do falecido estava balançando. De imediato gritou: “O homem tá vivo”. E “tava” mesmo. Foi um alvoroço. O que acontecera fora um fenômeno fisiológico,
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a catalepsia. Parece que está morto, mas não está.

Para resumir, dias depois Nicanor estava de volta ao trabalho, à rotina e Dolores aos seus pensamentos. E quais eram?. Vou contar: “Deus que me perdoe, mas Ni já cumpriu sua tarefa aqui. Devia ter ido... Eu ainda tenho muito o que fazer”. E pensava “naquilo” e “naquelas coisas”. A fervura acendia. “Deus que perdoe, mas era melhor que tivesse levado meu marido. E não parava de repetir, toda cheia das quenturas: “Deus que me perdoe”.

Deus não só perdoou, mas deu também uma forcinha. Dias depois, Nicanor caiu duro enquanto assinava uns documentos. Segundo o laudo, coração. Desta vez a viúva ligou logo para o compadre Bernardino. “Compadre, nada de velório, quem chorou, não precisa chorar mais. Nada de enterro. Vamos cremar o pobre”.

E assim se fez. Ligeirinho Ni virou cinzas. Essa é a história de Ni e Dô. A de Ni acaba aqui, em pó. E a de Dô, pelo jeito, está só começando.

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