Hoje o jornal A UNIÃO chega aos 132 anos impresso em papel, 80 dos quais coçando nos meus dedos, acendendo lembranças, atraindo-me quase a vida toda para o que tem se passado fora de mim e em mim se revertendo continuamente.
Na noite da última quarta-feira, presente às homenagens póstumas devidas pela Academia de Letras a Wills Leal e a Carlos Aranha, e subtraído pelo castigo da surdez a boa parte do que rezavam os discursos, aqui e ali me vi caindo na abstração, uma delas e a mais demorada puxada pela carta-aberta recente de Gustavo Petro, presidente da Colômbia, ao presidente Trump. Que associação me levaria a essa “recherche”?
A carta é um manifesto libertário com sopro de Bolívar escrita por alguém que descende em estilo e ousadia do capitão Aureliano Buendía: “A Colômbia agora deixa de olhar para o norte e olha para o mundo. (...) Seu bloqueio não me assusta porque a Colômbia, além de ser o país da beleza, é o coração do mundo”.
Colômbia, bloqueio, o próprio guerrilheiro Petro, hoje presidente, surgem me arredando do ar refrigerado da Academia, debaixo do qual eu me encolhia, para os janelões de sol que raiavam forte com as guerrilhas de Serra Maestra acompanhadas na mente e nos dedos pelo tradutor de telegramas de A União. Meu trabalho começava às 8 da manhã e o café com pão da Casa do Estudante se esgotava nas ladeiras que alcançam a rua Direita até as antigas escadas do próprio jornal. Mas o que vinha pelo noticiário das agências estrangeiras fazia desse emprego de iniciante um olhar para o mundo. Esse olhar que a carta do presidente Gustavo Petro nos alcança a todos os latinos. A minha idade também ajudava. E como ajudava.
Foram quatro discursos, além das palavras de agradecimento da família de Wills, a cargo de Teócrito Leal, e as de encerramento do presidente. Discursos de professores, escritores e poetas em intimidade com a tribuna. Mas a evocação dos nomes, das situações vividas por Aranha e Wills, este bem mais próximo de mim pelo ninho brejeiro e familiar, me deixavam no melhor de mim que é viver o passado.
O futuro ninguém sabe, dizia Anatole France. O presente, ah! O presente... O que foi futuro e hoje nos chega não é fácil avaliar.
Quando os da minha idade recordam seu tempo bom, realmente urbano, de ruas tranquilas, o pedestre com direito a atravessá-las e botar cadeira na calçada, os sítios florando e botando próximos de nós, as professoras reverenciadas, a raia masculina a ansiar pelo que discreteava a saia godê, a essa saudade se contrapõem a antiga mortalidade de índices miseráveis, o vasto mundo sem assistência médica, a fome sem disfarce, tudo se beneficiando hoje, uns mais outros menos, de um progresso tecnológico que vai da medicina computadorizada ao universo da produção via mercado. A UNIÃO tem sido o testemunho ininterrupto de todas essas mudanças, mesmo sonegando, em algumas fases, as nossas deficiências.
Numa coisa o mundo do velho tradutor de telegramas continua o mesmo: sempre vem das grandes civilizações, por suas matrizes, por seu poderio econômico e até cultural, a facilidade de destruir nações inteiras, lares, rebanhos humanos sem distinguir seus exércitos de suas crianças. A morte por aqui era mais sutil.