Bancada do telejornal formada com o âncora e seus convidados. Você olha para aquela gente e, prontamente, é levado a crer em que tem diante de si, na sua sala de visitas, as criaturas mais sábias e capazes do planeta. A vinheta e as primeiras imagens do programa trouxeram-me à lembrança um conselheiro aposentado do Tribunal de Contas conhecido por suas tiradas. Grupo reunido para a fotografia, ele gritava antes do clique do fotógrafo: “Todo mundo com cara de inteligente”.
É dele que sempre lembro quando a televisão me entrega em domicílio seus âncoras e seus especialistas escolhidos a dedo para análises econômicas e políticas, quase sempre isso.
Há pouco, eu me ajeitei na cadeira-do-papai, um presente do neto, a fim de acompanhar o debate sobre o tema da moda, o DeepSeek, a empresinha chinesa que, de uma hora para outra, desbancou as Big Tech americanas e todo o Vale do Silício.
O parvo que sou entendeu que a primeira questão levantada pelo âncora faria melhor sentido se formulada ao contrário. Isso mesmo, o moço peitou às avessas o problema. Quis ele saber dos seus convidados como e por que um empresariozinho de nada, um sujeito com menos de US$ 6 milhões, fez produto melhor e empurrou goela abaixo dos gigantes do setor prejuízo além de US$ 1 trilhão, resultado da queda brutal, inédita e, portanto, histórica das ações do grande empresariado na bolsa de valores.
“Que imbecilidade!”, pensei com meus incultos botões. A pergunta mais lógica e significativa, apesar de bem curta, seria: “Por que algo tão barato custa os olhos da cara da distinta freguesia?”.
Aí, então, a conversa teria sequência muito mais interessante e útil à humanidade, posto que passaria por investimentos governamentais titânicos, por contratos a peso de ouro, pelo liberô geral dos bancos com seus juros e, evidentemente, pelo comércio de ações nas bolsas.
Ah, sim, o estúpido que sou quase esquecia dos doadores de milhões e milhões às campanhas presidenciais. Quase não lembrava dos assentos ocupados por gigantes da Big Tech nas cerimônias dos que saem dessas campanhas vitoriosos, com paletó novo e o discurso de posse. Ou vocês não repararam na festa do último dia 7, aquela do Capitólio? Não viram quem ali estava à frente de chefes de Estado e congressistas, ou, quando menos, ombro a ombro com estes?
Por que o barato nos sai tão caro? A resposta também levantaria questões relacionadas à insatisfação dos que se endividaram para a aquisição dos milagres tecnológicos cometidos nos grandes centros de estudos e pesquisas ocidentais e, a partir daí, privatizados. A chiadeira vai ser grande e barulhenta. E virá em cadeia, nos elos e no modo como operam os circuitos da inteligência artificial, ou natural.
Sim, o chinês dono da DeepSeec, um moço chamado Liang Wenfeng, democratizou o uso da Inteligência Artificial (a coisa tem código aberto) e pôs muita gente grande em palpos de aranha. Ele, seu laboratoriozinho, sua equipe reduzida e seus US$ 6 milhões.
E, agorinha mesmo, Liang Wenfeng e sua criação despertam o tonto que sou para o entendimento de que a pergunta daquele âncora pode ter sido feita de modo torto não por burrice, mas por esperteza, para minorar a encrenca. Para permitir ilações diversas. Uma delas a de que a pirataria barateou o aplicativo Made in China.
Mas estamos a falar da maior economia do mundo em paridade de poder de compra, do segundo maior detentor de títulos do Tesouro dos EUA (era o maior antes de Trump-1, quando passou a vendê-los) e de uma nação que já mapeou, na Lua, as áreas de Hélio 3, o mineral indispensável à fissão nuclear, a fonte de energia que em breve porá as demais na lata de lixo. Perguntemos isso ao pessoal da astrofísica. É claro que, naquela bancada, ninguém ainda toma a China como um país de bicicletas. Pronto, este bobo acordou. Perdoem-me o cochilo.
Eis que o Instituto Australiano de Política Estratégica (o ASPI, na sigla em inglês) estima que a China supera os EUA em 57 das 64 tecnologias críticas. A lista inclui o design e a produção de circuitos integrados, processos de maquinação de alta especificação (seja lá o que isso signifique), motores de aeronaves, drones, enxames de robôs colaborativos, baterias elétricas, energia fotovoltaica e comunicações por radiofrequência avançada. Tais coisas estão num relatório de 2024 no qual o ASPI aponta os líderes globais em fabricações de alta complexidade.
O que se conta sobre o DeepSeek-R1, o modelo recém-lançado? Pois bem, que é a Inteligência Artificial mais avançada e acessível. Que alcança precisão espantosa e “ensina” outras IAs menores. Que, em alguns aspectos, supera o GPT-4, o modelo mais recente da OpenAi. Que foi desenvolvido para pensar em voz alta, que se corrige sozinho, que oferece respostas além da pergunta, pois descreve os cálculos que o levaram à solução do problema enfrentado.
Sabe um bebê que aprende a andar caindo e levantando? Assim, dizem, é o DeepSeek. Essa coisa ajusta seus movimentos até a perfeição dos passos. É modelo que, portanto, supera os que não aprendem dessa forma.
Faz uso da cadeia de pensamento para treinar, repita-se, um modelo menor. Assim treinadas, as versões menores podem apresentar resultados até melhores do que os do “professor” em áreas como codificação e raciocínio científico. Tem, potencialmente, uma clientela vastíssima: empresas pequenas, startups e pesquisadores com pouco dinheiro, dado que podem rodar essas versões compactas em computadores mais simples. Combina precisão, aprendizado contínuo e acessibilidade. Mas, acima de tudo, serve à democratização do acesso à IA.
Minhas leituras trouxeram-me a informação de que o DeepSeek tem uma garota prodígio: Luo Fuli, uma das principais desenvolvedoras do chatbot chinês (programa, como em outros países, que simula e processa conversas humanas, a fim de permitir a interação com dispositivos digitais, como se o usuário estivesse tratando com uma pessoa real). Lu formou-se na Universidade de Pequim para desenvolver modelos avançados de código aberto. Tem 29 anos e cara de boneca. Ufa!