A experiência de muitos tem mostrado que às vezes desobedecer ao médico é a salvação do doente (ou do hipotético doente). É uma atit...

Thomas Mann e o médico na montanha que ainda não era mágica

thomas mann montanha magica
A experiência de muitos tem mostrado que às vezes desobedecer ao médico é a salvação do doente (ou do hipotético doente). É uma atitude temerária que não recomendo, pois em geral os profissionais da medicina costumam acertar em seus diagnósticos, se não plenamente, pelo menos em parte, o que não é pouco. Por prudência, em determinadas situações, é sempre bom ouvir outras opiniões, pois as coisas, não raro, não são o que parecem à primeira vista. Enfim.

Quem leu A Montanha Mágica, o célebre e robusto romance de Thomas Mann, Prêmio Nobel de Literatura de 1925, há de lembrar-se do protagonista Hans Castorp, um jovem engenheiro de 23 anos, tido como saudável,
thomas mann montanha magica
que vai a Davos, na Suíça, visitar um primo em tratamento de tuberculose, num reputado sanatório. Corria o ano de 1907. A visita é prevista para durar apenas três semanas, mas termina por se estender por sete anos. Lá, o surpreso Castorp é diagnosticado com problemas nos pulmões e se resigna ao confinamento de praxe na montanha, cujo ar seco e frio era então considerado benéfico. Percebe-se, no livro, que o diretor do sanatório cultiva uma espécie de mórbido prazer em enxergar doenças nos visitantes, talvez por vício do ofício, talvez por estratégia financeira, já que não custava barato uma internação no hospital-hotel. Pois não deu outra no caso de Hans Castorp: foi só o médico botar-lhe os olhos em cima e já disparou a terrível sentença. Não tivesse o protagonista ido àquelas alturas visitar o primo, este realmente enfermo, e quem sabe nunca teria adoecido, pois muito frequentemente, como se sabe, é o hospital (ou o médico) que faz o doente.

O romance de Thomas Mann, publicado em 1924 e apontado por muitos como o motivo principal do Nobel de Literatura de 1925, foi escrito no período compreendido entre 1912 e 1924. Compreende-se. Pois a extensão e a complexidade da obra não combinam com ligeireza e açodamento. Trata-se, afinal, de um dos monumentos literários do século XX, quiçá de todos
thomas mann montanha magica
Thomas Mann (1875—1955) J. Lindner / German Docs / Via Wikimedia
os tempos. Vê-se também que a Primeira Grande Guerra (1914-1918) aconteceu exatamente durante a gestação da obra e tal fato haveria de repercutir na mesma, como seria talvez inevitável com um acontecimento daquela magnitude. O fato é que para o autor e para a crítica, A Montanha Mágica representou, sem nenhuma dúvida, um imenso avanço artístico relativamente a Os Buddenbrook, exitosa publicação anterior do alemão.

Somente em 1939, quando Mann, diante do avanço do nazismo e do início da Segunda Grande Guerra (1939-1945), já se encontrava exilado nos EUA, ele contou, numa palestra proferida em Princeton, a respeitada universidade, o episódio ocorrido durante a visita que fez à sua esposa num sanatório suíço antes de iniciar a escrita d’A Montanha, ou seja, antes de 1912. Como se pode observar, o episódio lembra muito o que aconteceu ao personagem Hans Castorp ao visitar o primo, provando que, para o criador, nada se perde e tudo se aproveita, de uma forma ou de outra:

“O director, que, como podem imaginar, se parecia um pouco, na aparência exterior, com meu Conselheiro Behrens, auscultou-me e verificou com a maior rapidez um pretenso abafamento, um ponto doente no meu pulmão, o qual, se eu fosse Hans Castorp, talvez tivesse dado uma reviravolta a toda a minha vida. O médico assegurou-me que eu agiria com muita prudência se me mudasse ali para cima para uma cura de meio ano e, se tivesse seguido o seu conselho, quem sabe, talvez ainda estivesse lá cima. Mas preferi escrever A Montanha Mágica (...)”.
thomas mann montanha magica
Waldsanatorium, em Davos, Suiça, local de internação de Katia Mann, esposa de Thoman Mann, para o tratamento de tuberculose, no início do século XX. WHotel
Eis aí, em poucas palavras, a questão. E cada qual que a ponha em si e reflita sobre como teria agido diante do diagnóstico do diretor do sanatório. Naturalmente, levando em conta as circunstâncias da época (inícios do século passado), ou seja, a alta mortalidade da tuberculose e o prestígio do profissional que examinou Thomas Mann. Teria o leitor seguido o conformado Hans Castorp e passado, quem sabe, sete anos confinado, ou se rebelado como o escritor, descido de imediato a montanha e vivido saudavelmente por décadas?

thomas mann montanha magica
Thomas Mann ▪ Wikimedia
O certo é que se pode afirmar que devemos A Montanha Mágica e toda a obra posterior de Thomas Mann àquela temerária rebeldia, que, aliás, poderia, talvez, ter custado a sua vida. Ele deu sorte, é verdade, mas muitos não dão. Daí ser aconselhável, nesses casos, a cautela de se ouvir pelo menos uma segunda opinião, aquela que afasta o diagnóstico desfavorável ou o confirma. O escritor, ao que se sabe, não ouviu mais ninguém; simplesmente ignorou o que não lhe interessava ouvir.

Tenho um amigo brincalhão que, sobre médicos e exames, costuma dizer o seguinte: “Quem procura, acha.”. E é verdade. Mas também não radicalizemos. Nem tanto nem tão pouco. Um check-up com alguma regularidade é salutar.
thomas mann montanha magica
Evitemos surpresas. Mas tudo com bom senso. Nem Hans Castorp nem Thomas Mann. Afinal, raríssimos são os que ainda têm pela frente uma mágica montanha para erguer.

O ano de 2024 marcou o centenário de publicação do grande romance. É uma data importante para a cultura ocidental. No Brasil, praticamente não se viu referência a respeito, o que não é de estranhar, já que pouco também se falou entre nós sobre os quinhentos anos de nascimento de Camões. Entretanto, já no apagar das luzes do ano comemorativo, saiu um ensaio que merece acolhida pelos fãs de Thomas Mann. Trata-se de O Escândalo da Distância – Uma leitura d’A Montanha Mágica para o século XXI (Editora Tinta da China, Lisboa-São Paulo, 2024), do professor português João Pedro Cachopo. Foi neste estudo que colhi a curiosa historieta agora compartilhada com o leitor, destinatário último de tudo quanto se escreve e lê neste mundo vário, seja nas alturas, seja na planície, pois, como bem disse Drummond, “de tudo faz-se a crônica”. E é verdade.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também