O mundo é belo antes de ser verdadeiro. O mundo é admirado antes de ser verificado. Gaston Bachelard . O Ar e os Sonhos . Michèl...

Somos animais poéticos

michele petit somos animais poeticos
O mundo é belo antes de ser verdadeiro. O mundo é admirado antes de ser verificado.
Gaston Bachelard. O Ar e os Sonhos.

Michèle Petit é antropóloga e pesquisadora das práticas de leitura. No livro Somos animais poéticos: a arte, os livros e a beleza em tempos de crise (Ed. 34, 2024), procura demonstrar como a literatura – oral e escrita - e outras formas de arte a elas associadas podem nos ajudar a recuperar nossos desejos e a nos conectar conosco e com o mundo à nossa volta. Por esta mesma editora, já publicou A arte de ler ou como resistir a adversidade e Os jovens e a leitura.

Os temas abordados em seus livros são referências para os estudos sobre leitura, a função das bibliotecas e dos mediadores culturais nos mais diferentes contextos. Ela parte do princípio de que precisamos de poesia e da beleza
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para sobreviver em contextos difíceis, superar traumas e adversidades. É preciso “reinventar a vida”.

Os textos reunidos em Somos animais poéticos foram escritos em diferentes momentos, frutos de conferências realizadas pela antropóloga francesa em países da América Latina, na Espanha e na França. Alguns me chamaram a atenção pela especificidade temática, como As palavras habitáveis (e as que não o são) que foi lido pela primeira vez na Feira Internacional de Buenos Aires, em 2015. Posteriormente foi apresentado na Bibliothèque Nationale de France e retomado na Universidade Autônoma de Barcelona, durante o simpósio La Littérature qui Accueille (2016) e na Maison de l'Amérique Latine, como parte do Ano França-Colômbia (2017). Michèle Petit relata as experiências de imigrantes que são obrigados a esquecer sua língua materna para garantir a sobrevivência, há aqueles que sofrem também discriminações no seu próprio país por apresentar uma cultura diferente como aconteceu no Canadá, do final do século XIX a 1996, mais de 150 mil crianças ameríndias foram arrancadas de suas famílias e levadas a pensionatos onde deviam adquirir os costumes dos brancos.

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Entre as décadas de 1880 e 1990, o programa Indian Residential School (IRS), estabelecido pelo governo canadense e executado pelas igrejas Católica, Anglicana e Protestante, retirou forçadamente mais de 150.000 crianças indígenas de suas famílias, enviando-as para escolas residenciais, localizadas longe de suas casas, com o propósito de assimilá-las à cultura dominante e às crenças e valores eurocêntricos. Muitos alunos sofreram negligência e abuso. ▪ Fontes: Klein Lawyers / Canadian Museum for Human Rights / Canadian Encyclopedia.
Outro texto emblemático é O inferno, a arte, os livros, a beleza apresentado na Conferência de Encerramento do II Congresso Internacional da Infância e Cultura, em Posadas, na Argentina. A respeito do inferno, a autora se detém em relatar as memórias de crianças no período da 2ª Guerra Mundial que pode ser associada com as guerras modernas entre palestinos e judeus. Os desenhos feitos por crianças, representando cenas de guerra são terríveis, elas contam a história das guerras de forma minuciosa e se valem de desenhos, pinturas.

Philippe Lançon
Quanto à arte, o exemplo citado vem do livro de Philippe Lançon – Le lambeau (O trapo) em que o autor foi sobrevivente de um atentado e diz ter saído do inferno graças à música e à literatura. Quando estava no bloco cirúrgico, ouvia a música de Bach que o acalmava, lia Kafka, Proust e Shakespeare e considera que Shakespeare é sempre um excelente guia quando se trata de avançar na neblina dúbia e sangrenta, ele dá sentido ao que foi sofrido e vivido.

Para a beleza, ela cita o escritor brasileiro Bartolomeu Campos de Queirós que afirmava que a beleza é para ser compartilhada – “quando encontramos a beleza, é extremamente triste estar só”. Michèle Petit considera que a beleza é, em múltiplos aspectos, uma dimensão indispensável aos seres humanos, uma necessidade universal e cita o poeta espanhol Luis García Montero: “O direito à beleza deveria ser o resumo final de todos os outros direitos humanos”.

Christiane Taubira
Christiane Taubira, ex-ministra da Justiça, nascida na Guiana Francesa, sofreu ataques racistas execráveis e conta que só os poetas ajudaram-na a recuperar a alegria de viver. É urgente ensinar como acolher a beleza, ela está latente, impaciente, indolente ou diligente. Ensinar como acolher a beleza é tarefa para professores, bibliotecários, mediadores da leitura, contadores de história e artistas que praticam dia após dia... a arte de embelezar a vida.

Somos feitos da mesma matéria que os sonhos foi lido na Feira do Livro para Jovens, em Villeurbanne (2019) e depois publicado na Espanha. Embora reconheça que vivemos tempos difíceis, é preciso transmitir às crianças e jovens a fé no futuro, nem tudo está perdido, a arte, a poesia e a literatura proporcionam bem-estar, ainda existem pessoas que estão dispostas a provocar sonhos.

Michèle Petit
Michèle Petit, neste mesmo texto, cita o professor e crítico brasileiro Antonio Candido que lembrava que não existe povo ou ser humano que possa viver, no cotidiano, sem uma dimensão poética, ficcional ou dramática e aproxima a literatura do sonho nessa passagem do texto O direito à literatura:

Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar 24 horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. O sonho assegura durante o sono a presença indispensável desse universo independente de nossa vontade. E durante a vigília, a criação ficcional ou poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades, está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito, como anedota, causo, história em quadrinhos, noticiário policial, canção popular...

Há outros textos neste livro que merecem uma leitura cuidadosa. A antropóloga francesa desdobra e aprofunda temas de grande valia para os estudos sobre a leitura, livros, experiências de vida.

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