Segundo Johan Huizinga, autor de Homo Ludens, o ser humano anseia pelo lúdico, nasce predisposto ao jogo. E quanto mais o elemento competitivo estiver presente, mais apaixonante se torna o jogo. “Dentro do círculo do jogo, as leis e costumes da vida quotidiana perdem validade. Somos diferentes e fazemos coisas diferentes. Esta supressão temporária do mundo habitual é inteiramente manifesta no mundo infantil, mas não é menos evidente nos grandes jogos rituais dos povos primitivos”. Isso muito se evidencia em “Round 6”,
série da plataforma Netflix, já de grande sucesso, agora na 2ª temporada. Como expectadores, também somos chamados para jogar, tornando-se difícil não prosseguir sucessivamente a cada episódio.
Na série coreana, dirigida por Hwang Dong-Hyuk, 456 pessoas são convocadas para um jogo. O que elas têm em comum: todas estão arruinadas financeiramente e sem perspectiva de mudança. O perfil dos participantes vai desde traficantes a grandes mentes do mercado financeiro. Assim, com o objetivo de transformarem sua realidade, esses indivíduos são levados a um espaço reservado no qual serão submetidos a diversas provas. Ninguém é forçado a nada. O jogo segue pelo discurso democrático, em que a maioria determina o que prossegue ou se encerra. Mas, a princípio, não sabiam que essa “brincadeira” custaria literalmente suas vidas. Após o primeiro jogo, descobrem que o vencedor de todas as rodadas faturará o equivalente a 40 milhões de reais. Que vetor maior existe no mercado da vida?
Fora da ficção, esses fatos não parecem tão distantes, haja vista que presenciamos constantemente pessoas dispostas a tudo, inclusive a dar suas vidas para chegarem aos cargos e ao saldo bancário que tanto ambicionam. Movidos pela ganância, matam e morrem, submetem seus corpos, doam seu tempo, abdicam de seus amores e até de sua família. É importante destacar que, na obra coreana, antes de as personagens irem à competição, assinam um termo no qual está previsto o domínio de seus corpos por parte de quem os convoca. Essa é uma forma do exercer aquilo que o filósofo Michel Foucault denominou de biopoder. Rodeados de soldados armados, os jogadores não têm outra opção senão a de serem controlados. Há, sim, outra: poderão abandonar o jogo se a maioria concordar. Mas, abrir mão do próprio ego não é praxe na história da humanidade. O jogo é um subterfúgio da realidade que para muitos é tão cruel quanto ou até mais.
Outro aspecto que merece ser ressaltado é o fato de os jogadores serem identificados por números, retirando aquilo que, depois do rosto, nos confere maior identidade: o nome. Nisso há uma semelhança entre os algozes e os confinados. Estes não têm nome, visto que são identificados pelos números, e aqueles não têm rosto, porque se escondem por trás das máscaras. Somente após as personagens principais formarem vínculos é que seus nomes são revelados. É mais fácil destruir o outro quando a impessoalidade é mantida.
Todo jogo tem suas regras e para prosseguirmos é necessário que estas sejam respeitadas. Porém, nada impede que sejam burladas com trocas de favores, esquemas e com a ruptura da ética e da moral. A violência figura a cada capítulo. As cores vivas nos uniformes dos agentes, os efeitos psicodélicos e, principalmente, o sangue que jorra a cada morte dos jogadores nos suscitam asco, mas também nos remetem à crueldade, ao horror das práticas apresentadas na obra. Impossível não lembrar de Tarantino em cuja filmografia, a exemplo de “Django livre”, faz uso frequente desse recurso.
Nesse gancho intertextual, como também não nos remetermos ao celebrado filme “Parasita”, ganhador do Oscar em 2020, no qual a relação entre as classes privilegiadas e as marginalizadas é representada de modo bastante alegórico, sem se desprenderem de uma simbólica sucessão de violências que cotidianamente são veladas, naturalizadas. Pois é: por trás de toda forma de violência há expectadores que a sustentam. O poder se mantém nessa rede de promotores e receptores, disciplinando mentes e corpos, como também aponta Foucault. Por todas essas reflexões, “Round 6” se justifica como uma obra em que a arte mais uma vez cumpre a sua função social de denunciar os “Jogos mortais” a que somos rotineiramente submetidos. Quem é você no jogo?