A MAIS RECÔNDITA MEMÓRIA DOS HOMENS Autor: Mohamed MBougar Sarr Vencedor do prêmio Goncourt - 2021 Tradução: Diogo Cardoso Ed. Fósfor...

Dica de leitura: A mais recôndita memória dos homens

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A MAIS RECÔNDITA MEMÓRIA DOS HOMENS Autor: Mohamed MBougar Sarr Vencedor do prêmio Goncourt - 2021
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Tradução: Diogo Cardoso Ed. Fósforo

O belo título é retirado do romance Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño, no qual ele faz a reflexão sobre o desaparecimento da Obra e o fim da memória do humano.

“De um escritor e sua obra, pode-se saber ao menos uma coisa: os dois caminham juntos pelo labirinto mais perfeito que se possa imaginar, uma rota longa e circular cujo destino se confunde com a origem: a solidão.”
“A vida não passa do espaço que se separa ao mesmo tempo que une, as palavras pode e ser.”
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Roberto Bolaño (1953—2003), escritor chileno.Div.
Questões profundas e complexas sobre a criação literária atiçarão a curiosidade do leitor. A narrativa trata de uma longa busca de um escritor senegalês, Diégane Faye, por outro escritor, T.C. Elimane, autor africano desaparecido após seu livro O labirinto do inumano ter alcançado muito sucesso e logo depois ter sido acusado de plágio. Não só o autor desaparecera, como também não voltou a escrever mais nenhum livro.

Uma grande discussão se abre para o leitor sobre empréstimo, roubo, apropriação no tecido literário. Questão complexa visto que a literatura é uma malha tecida desde os tempos imemoriais. Nenhum texto é único, ele é sempre uma
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MS
rede, continuação. Nada que é humano é único.

Na história, o autor T. C. Elimane teria incorporado autores clássicos, autores que haviam alcançado seu Pantheon e teria imitado e citado seus textos no afã de homenageá-los, mostrar seu conhecimento, seu amor, sua grande admiração por essa literatura.

O autor é africano e sua escrita se faz na língua francesa. Língua essa adotada em seu país de origem imposta pela colonização, e que o autor senegalês, Diégane, chama de estupro da língua. A sua questão parece se colocar entre colonizado e colonizador. A problemática do abuso de poder refletida na literatura, merecimentos, prêmios, intrigas. A nódoa do colonizador que parece ainda atuar. A escrita do autor africano faz uso dos mesmos instrumentos, já que sua língua é também a do colonizador, mas é este quem instrui, domina, estabelece regras e decide.

Questões teóricas se abrem para o problema da criação literária. Refletem sobre a criação literária do imigrante, como reagir à imposição cultural do colonizador, se desfazer da sua arrogância, da presumida superioridade do branco sobre o negro. E argumenta sobre o desafio de se voltar para questões propriamente
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suas, de seu continente. Criar uma estética literária que diga mais respeito às suas questões, às lendas africanas, de seu mundo diferente do europeu, para que não tenha que passar pelo crivo de aprovação do colonizador. Essa é a questão maior de que trata o livro.

“Uma alerta para autores africanos: invente sua própria tradição, funde sua história literária, descubra suas próprias formas, cultive seu imaginário, tenha uma terra sua, porque é nela que você existirá”, diz o narrador.

O que clama esse alerta? Não estaria ele apontando para o lugar de onde nasce o discurso de um escritor? Por mais influências que enriqueçam um texto ele só se fertilizará em sua profundidade através de suas origens, seu berço inaugural. O autor marroquino, Tahar Ben Jelloun, radicado em Paris só escreve sobre o Marrocos. Todas as suas narrativas são sobre tradições, lendas, mitologia, fábulas, sagas e crenças marroquinas. Em uma entrevista à Magazine Littéraire e à pergunta frequentemente dirigida a ele, porque não escreve romances sobre a sociedade francesa, Ben Jelloun responde:

“O Marrocos é um país que me nutre, ele é minha obsessão, me inquieta, me faz sonhar e me dá enxaquecas. Mais que isso: ele não me deixa”.
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Tahar Ben Jelloun, romancista, poeta e pintor marroquino.Div.
O que fecunda suas narrativas é o seu país de origem. É ele que lhe dá subsídios, que o alimenta perenemente. Para todo exilado a matéria de sua arte será sempre sobre sua origem, seu país, sua cultura primordial. O pintor Cícero Dias viveu a maior parte de sua vida em Paris, ele teve sempre como tema principal sua terra natal. “Eu vi o mundo ele começava no Recife".

Um escritor e um pintor não se confrontam no estrangeiro com os mesmos obstáculos e não são submetidos a desafios semelhantes. Para o escritor, trocar de idioma é um problema maior. Depender das palavras e da sua sintaxe é mais desafiador,
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Emil Cioran (1911—1995), escritor e filósofo romeno ▪ Fonte: Imdb
trata-se de mudar de instrumentos próprios para adotar outros. Como fez o escritor e filósofo Cioran que abandonou sua língua de origem e passou a escrever exclusivamente em francês. De início ele se entusiasma com a Nação da razão. Mas, ao longo dos anos ele a combate. Em um de seus textos, elogia o século XVIII, a grandeza revolucionária e os salões literários, mas critica a leviandade, a superficialidade. Em vida vários prêmios literários lhe foram outorgados: Prêmio Sainte-Beuve, Prêmio Combat, Prêmio Roger-Nimier pelo conjunto da obra, e, ainda em 1988, o Prêmio da Academia Francesa de Letras. Todos declinados por ele.

De qualquer maneira há diferença entre um exilado africano de países colonizados pela França e um exilado político de outro país. O primeiro possui o mesmo idioma do país adotado, ele também é filho desse país, possui identidade e legitimidade. O exilado de outro país se defrontará com o problema do idioma enquanto instrumento de trabalho.

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Mohamed MBougar Sarr, escritor senegalês, autor do livro A mais recôndita memória dos homens ▪ Imagem: Ytube TV5 Monde
O livro é também sobre essa questão essencial: A chama que não se apaga vem do fogo primordial. É da sua origem que o ímpeto da escrita sobrevive. A matéria viva de um escritor estaria ancorada nela. É ela que impulsiona sua criação, que pergunta incessantemente, que traz sua problemática de forma constante e contínua. É dela que surgem seus temas, aqueles que renascem sempre, que o inquietam, que o impulsionam à escrita. Para que se tenha sempre sobre o que dizer. Ou ficar diante da questão que habita todo escritor: escrever ou não escrever?

Mas, para aqueles que migraram que pátria seria essa? Onde centrar sua escrita? Que lugar fundaria sua origem primordial? Só no final do livro o autor revela que pátria seria essa. Deixo ao leitor esse sabor da descoberta.

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  1. Anônimo2/1/25 08:03

    Seu texto, Lúcia, nos deixa com vontade de ler o livro. As questões nele abordadas são relevantes. As tradições, a língua, a terra natal são temas importantes para qualquer escritor, principalmente os que vivem em outro país que não o seu. No caso dos colonizados, o problema cresce, pois se impõe a necessidade de afirmação perante o colonizador. Com tudo isso eu concordo. Mas também penso que o escritor pode - e deve - tratar de questões que sejam universais, que digam respeito a todo mundo, sem o viés explícito das origens do autor. Fosse eu marroquino, por exemplo, escreveria sobre o Marrocos, claro, mas também procuraria escrever sobre outras coisas, outros lugares, sobre a França, se morasse lá. Mas isso é uma opinião minha, com a qual ninguém tem de concordar. De qualquer modo, sua análise do livro foi muito boa e instigante. Obrigado, parabéns e abraço. Francisco Gil Messias.

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  2. Excelentes a dica de leitura e a abordagem regionalista nos livros de escritores exilados e/ou acolhidos por outras nações. Excelente, de igual forma, o comentário de Gil Messias. É admirável o trabalho de artistas que não se limitam a temas, paisagens e conflitos locais, produzindo obras de interesse universal, seja na literatura, no cinema, na música e na pintura.

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    1. sempre grata por esse espaço rico, diverso, democrático.

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  3. Obrigada Gil pela leitura. Também concordo com você, escrever sobre o entorno, a vida presente não importa onde é possível e até instigante. O livro me pareceu um debate do imigrante, uma questão entre colonizado e colonizador daquele que se esforça para tudo conhecer da cultura francesa e opinar sobre ela. Aparentemente surge uma competição do lugar de fala.

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