A MAIS RECÔNDITA MEMÓRIA DOS HOMENS
Autor: Mohamed MBougar Sarr
Vencedor do prêmio Goncourt - 2021
Tradução: Diogo Cardoso
Ed. Fósforo
O belo título é retirado do romance Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño, no qual ele faz a reflexão sobre o desaparecimento da Obra e o fim da memória do humano.
“De um escritor e sua obra, pode-se saber ao menos uma coisa: os dois caminham juntos pelo labirinto mais perfeito que se possa imaginar, uma rota longa e circular cujo destino se confunde com a origem: a solidão.”
“A vida não passa do espaço que se separa ao mesmo tempo que une, as palavras pode e ser.”
Questões profundas e complexas sobre a criação literária atiçarão a curiosidade do leitor. A narrativa trata de uma longa busca de um escritor senegalês, Diégane Faye, por outro escritor, T.C. Elimane, autor africano desaparecido após seu livro O labirinto do inumano ter alcançado muito sucesso e logo depois ter sido acusado de plágio. Não só o autor desaparecera, como também não voltou a escrever mais nenhum livro.Uma grande discussão se abre para o leitor sobre empréstimo, roubo, apropriação no tecido literário. Questão complexa visto que a literatura é uma malha tecida desde os tempos imemoriais. Nenhum texto é único, ele é sempre uma rede, continuação. Nada que é humano é único.
Na história, o autor T. C. Elimane teria incorporado autores clássicos, autores que haviam alcançado seu Pantheon e teria imitado e citado seus textos no afã de homenageá-los, mostrar seu conhecimento, seu amor, sua grande admiração por essa literatura.
O autor é africano e sua escrita se faz na língua francesa. Língua essa adotada em seu país de origem imposta pela colonização, e que o autor senegalês, Diégane, chama de estupro da língua. A sua questão parece se colocar entre colonizado e colonizador. A problemática do abuso de poder refletida na literatura, merecimentos, prêmios, intrigas. A nódoa do colonizador que parece ainda atuar. A escrita do autor africano faz uso dos mesmos instrumentos, já que sua língua é também a do colonizador, mas é este quem instrui, domina, estabelece regras e decide.
Questões teóricas se abrem para o problema da criação literária. Refletem sobre a criação literária do imigrante, como reagir à imposição cultural do colonizador, se desfazer da sua arrogância, da presumida superioridade do branco sobre o negro. E argumenta sobre o desafio de se voltar para questões propriamente suas, de seu continente. Criar uma estética literária que diga mais respeito às suas questões, às lendas africanas, de seu mundo diferente do europeu, para que não tenha que passar pelo crivo de aprovação do colonizador. Essa é a questão maior de que trata o livro.
“Uma alerta para autores africanos: invente sua própria tradição, funde sua história literária, descubra suas próprias formas, cultive seu imaginário, tenha uma terra sua, porque é nela que você existirá”, diz o narrador.
O que clama esse alerta? Não estaria ele apontando para o lugar de onde nasce o discurso de um escritor? Por mais influências que enriqueçam um texto ele só se fertilizará em sua profundidade através de suas origens, seu berço inaugural. O autor marroquino, Tahar Ben Jelloun, radicado em Paris só escreve sobre o Marrocos. Todas as suas narrativas são sobre tradições, lendas, mitologia, fábulas, sagas e crenças marroquinas. Em uma entrevista à Magazine Littéraire e à pergunta frequentemente dirigida a ele, porque não escreve romances sobre a sociedade francesa, Ben Jelloun responde:
“O Marrocos é um país que me nutre, ele é minha obsessão, me inquieta, me faz sonhar e me dá enxaquecas. Mais que isso: ele não me deixa”.
O que fecunda suas narrativas é o seu país de origem. É ele que lhe dá subsídios, que o alimenta perenemente. Para todo exilado a matéria de sua arte será sempre sobre sua origem, seu país, sua cultura primordial. O pintor Cícero Dias viveu a maior parte de sua vida em Paris, ele teve sempre como tema principal sua terra natal. “Eu vi o mundo ele começava no Recife".Um escritor e um pintor não se confrontam no estrangeiro com os mesmos obstáculos e não são submetidos a desafios semelhantes. Para o escritor, trocar de idioma é um problema maior. Depender das palavras e da sua sintaxe é mais desafiador, trata-se de mudar de instrumentos próprios para adotar outros. Como fez o escritor e filósofo Cioran que abandonou sua língua de origem e passou a escrever exclusivamente em francês. De início ele se entusiasma com a Nação da razão. Mas, ao longo dos anos ele a combate. Em um de seus textos, elogia o século XVIII, a grandeza revolucionária e os salões literários, mas critica a leviandade, a superficialidade. Em vida vários prêmios literários lhe foram outorgados: Prêmio Sainte-Beuve, Prêmio Combat, Prêmio Roger-Nimier pelo conjunto da obra, e, ainda em 1988, o Prêmio da Academia Francesa de Letras. Todos declinados por ele.
De qualquer maneira há diferença entre um exilado africano de países colonizados pela França e um exilado político de outro país. O primeiro possui o mesmo idioma do país adotado, ele também é filho desse país, possui identidade e legitimidade. O exilado de outro país se defrontará com o problema do idioma enquanto instrumento de trabalho.
O livro é também sobre essa questão essencial: A chama que não se apaga vem do fogo primordial. É da sua origem que o ímpeto da escrita sobrevive. A matéria viva de um escritor estaria ancorada nela. É ela que impulsiona sua criação, que pergunta incessantemente, que traz sua problemática de forma constante e contínua. É dela que surgem seus temas, aqueles que renascem sempre, que o inquietam, que o impulsionam à escrita. Para que se tenha sempre sobre o que dizer. Ou ficar diante da questão que habita todo escritor: escrever ou não escrever?
Mas, para aqueles que migraram que pátria seria essa? Onde centrar sua escrita? Que lugar fundaria sua origem primordial? Só no final do livro o autor revela que pátria seria essa. Deixo ao leitor esse sabor da descoberta.