Querida Fernanda Torres:
“Em 'Ainda estou aqui', você não é apenas nossa história ou a atriz que encarna o papel de uma mulher extraordinária, sem derramar uma só gota de lágrima. Você coloca no centro da sala o debate sobre o que ocorre com uma família quando a arbitrariedade do autoritarismo vinga… A resistência é a insistência de Eunice em fazer com que, diante do fotógrafo, todos estejam sorrindo. Algo insuportável aos movimentos autoritários…
(Jamil Chade, Carta a Fernanda Torres)
Quando li essa carta do jornalista Jamil Chade, nas redes sociais, muito me emocionei, e quis escrever a minha cartinha, para você também, Fernanda. Com as devidas proporções, claro. Acho que todos os brasileiros, e todas as mulheres querem escrever algo.
Durante toda a semana só vimos você. Nas redes, nos aplausos, no vestido preto lindíssimo com decote profundo, costas belas, cabelo repicado e um prêmio merecido e tanto, por um filme que já se torna outra retomada do Cinema Brasileiro, depois de tudo o que passamos no Governo anterior que, confunde Rede Globo com Globo de Ouro, e acha que a Lei Rouanet é para os artistas roubarem.
Domingo à noite, acordei pouco antes da sua nomeação de melhor atriz, a tempo de gritar na solidão do meu quarto, em uníssono com a minha musa Tilda Swinton (desde Orlando), e todo o Brasil. Coração palpitando e as lágrimas aos pulos.
Desde que assisti ao filme, Ainda estou aqui, adaptado do romance do mesmo nome, do escritor Marcelo Rubens Paiva, que a música de Erasmo Carlos me reverbera aos ouvidos, assim como o livro que me chacoalhou em 2015, quando o li. A história de Eunice Paiva, abriu as cortinas para o seu filho Marcelo e também para nós brasileiros que, rememoramos sobre o que realmente acontecia nos porões da ditadura e da vida do apagamento das famílias que sofreram de perto a falta de um corpo e de um atestado de óbito.
Te sigo Fernanda, desde muito tempo. Desde quando tinhas bochechas. Inocência, Terra Estrangeira, Eu sei que vou te amar, Casa de Areia, Os Normais e Entre Tapas e Beijos (deliciosamente traduzido na grande noite para Snaps and Kisses), esse eu não perdia, e gargalhava com as personagens de Fátima e Sueli e as roubadas românticas e atrapalhadas que só elas sabiam fazer. Quando iam beber para desafogar as mágoas, eram impagáveis. Sem falar no seu livro de estreia, Fim, mas que parecia de uma escritora veterana. Maratonei a Série, fazendo ligações perigosas com a minha própria geração, os meus próprios abismos e aprisionamentos. E te lia muito nas crônicas e textos que publicavas. Como admiro a tua escrita, cheia de astúcia, acidez, talento, palavras, profundidade, articulação política/ artística/ e cultural, bagagem literária, humor, sabedoria e tantos outros predicados. E claro, a tua casa, tua sala para Yoga, teu casamento, o que falas dele, os filhos, a mãe, a família, os trabalhos que fazes, as entrevistas que concedes – a última foi no Roda Viva e no PodCast – Se ela não sabe, quem sabe?
Sempre admirei a tua moda classuda e minimalista. Cada roupa mais bárbara que a outra! Tudo preto, branco e bege. Logo eu que, estou mais para Frida Kahlo nas estampas e nos brincos, prá que te quero. A tua disciplina em perder peso, em fazer exercícios, em trabalhar com o que gostas. Nunca pude acompanhar o teu trabalho no teatro. As lonjuras daqui não me davam acesso aos Budas Ditosos, Gerald Thomas e tantos outros. Caminho longo, ofício abastecido. Como admiro! Tudo desaguou no discurso quando recebestes o prêmio. Como podes subir ao palco naquele momento, num scarpin salto 30, desbancando aquelas deusas todas que admiramos, do Titanic ao Babygirl, e ainda fazer um discurso forte, sucinto, ágil, elegante e político? Aos olhos apaixonados do teu marido Andrucha, que virou meme de exemplo, e do lindo Selton Mello, cheio de orgulho e lágrimas nos olhos.
Uma unanimidade você, querida! Aos 59 anos, que feito! Que alcance! Que prêmio! Queria muito ter ido ao Bar do Sr. Chalita (em memória do querido Flávio Migliaccio) para brindar com você e a minha outra musa, Andrea Beltrão, essa eu pude assistir anos atrás, no Teatro Poeira, em Sonata de Outono, com a sua comadre, Marieta Severo e que me deixaram paralisada diante dos conflitos mãe e filha.
Tudo já foi dito sobre o filme. Tudo já foi homenageado a você, ao Walter Salles, e à toda a equipe do filme. Tudo já foi esmiuçado sobre a história dessa mulher, Eunice, que, no seu silêncio e contenção, enfrentou a ditadura cruel, assistiu ao marido sumir, com aquele olhar vazio ao longe, e sustentar 5 filhos sem um atestado de óbito para ter acesso aos seus bens, e ainda se formar em Direito e lutar por causas humanitárias toda a vida. Choramos ao final do filme pela ironia da sua enfermidade. Perder a memória, justo a sua, a que lutou e conseguiu finalmente os seus direitos, mesmo que tardios.
“Num mundo onde a extrema direita avança, onde a desinformação passou a ser um instrumento legítimo de poder e o espaço cívico encolhe, "Ainda estou aqui" é uma declaração de amor à resistência e à construção da democracia por cada um de nós.”
(Jamil Chade)
Com as palavras de Chade me despeço. Com mais aplausos, emoção, carinho e admiração. Todos os Parabéns. Aquele Abraçaço! Tudo extensivo à mamãe.
Ana Adelaide Peixoto
João Pessoa, janeiro de 2025