Meu querido amigo Germano Romero citou uma curiosa estrofe em suas redes sociais por ocasião das festas de fim de ano:
"Felicidade é uma canoa no rio
Uma espiga na brasa
Um cobertor p'ro frio
E um amor em casa"
A citação foi retirada da "Canção da Felicidade", também conhecida no cancioneiro popular português, e que já foi regravada por diversos intérpretes. Em sua versão supostamente "original", os versos aparecem assim:"Uma canoa no rio,
Uma sardinha na brasa,
Um cobertor para o frio,
E um amor dentro de casa"
Germano teve a sensibilidade de trocar o substantivo feminino singular "sardinha" por "espiga", numa contextualização cultural muito interessante, pois, no Brasil, o milho substituiu a sardinha nas fogueiras de São João devido à sua maior abundância e praticidade, começando pelo interior, onde a cultura agrícola predomina. O milho, colhido em junho, se adaptou às tradições regionais e se tornou símbolo das celebrações. Como o "São João" no Brasil se disseminou como uma festa de raiz interiorana, a espiga venceu a sardinha até mesmo no litoral.
Outro velho amigo sempre me recitava os mesmos versos, atribuindo-os a um pescador do município de Lucena, que costumava repeti-los. Curiosamente, o grupo de chorinho da vizinha cidade de Cabedelo, costuma tocar a "Canção da Felicidade" , sempre acompanhando a elogiada interpretação da cantora Roseleide Farias.
A canção também pode ser encontrada nas vozes dos cantores de bolero Hélio Portinhal e Orlando Dias, e também de Teixeirinha, mais dedicado a músicas gaúchas.
Há uma versão lusitana, executada por José Afonso, diferente da que circula no Brasil:
Felicidade é uma quimera
Que o homem persegue pela vida fora,
É uma casa pequenina
E uma roseira à porta.
Felicidade é uma sardinha na brasa
E um amor dentro de casa.
Felicidade é uma conversa à janela,
Um sorriso de criança,
É uma coisa tão singela.
A autoria dessa adaptação é atribuída aos compositores portugueses José Niza e Luís Oliveira, enquanto a versão brasileira é imputada a Francisco Luiz, que aparece como autor na gravação feita por Hélio Pontinhal.
A canção é mais portuguesa ou mais brasileira? Qual a sua versão "verdadeira"? Quem a compôs primeiro?
Antes de William Shakespeare, a história de "Romeu e Julieta" já fora contada pelo poeta inglês Arthur Brooke em 1562, que, por sua vez, baseou-se no escritor italiano Matteo Bandello, que publicou o drama dos amantes de Verona em 1554, inspirado em antigas lendas e narrativas populares.
Ariano Suassuna relatou que se inspirou num mentiroso contumaz, com o qual conviveu em sua infância na cidade de Taperoá, para criar o personagem Chicó. Já em relação a João Grilo, Suassuna faz o resgate de uma figura muito popular nos contos nordestinos, e que se insere numa longa tradição de personagens pícaros portugueses e espanhóis, a exemplo de João Ratão e Lazarillo de Tormes.
O famoso Cordel nordestino "O Romance do Pavão Misterioso" relata o resgate da condessa grega Creuza pelo herói João Evangelista, que a bordo de uma máquina voadora criada pelo inventor português João Sem Medo, retira-a de uma torre. A história se assemelha à de Rapunzel, popularizada pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, a partir do seu livro "Contos de Fadas", publicado em 1812. O autor francês Charles Perrault também apresentou uma versão de "Rapunzel" em 1697, no livro "Histórias ou Contos de Tempos Passados", mas há narrativas ainda mais remotas sobre uma donzela sendo socorrida por um herói.
Uma das partes mais emocionantes e épicas do Ramayana, o grande épico hindu atribuído ao sábio Valmiki, é sobre o resgate da princesa Sita, após ela ser sequestrada pelo demônio Ravana, o rei de Lanka, o que provocou a longa e árdua jornada de Rama para resgatá-la.
Acredita-se que o Ramayana tenha sido escrito entre os anos 200 a.C. e 200 d.C.
A pergunta sobre "quem é o autor?" desafia a ideia de uma origem fixa. Ao longo de gerações, canções, contos, fábulas e histórias se transformam, enriquecidos e remodelados pelas mãos e pelos corações dos que os recriam.
Não pode haver um único autor para aquilo que toca a todos, pois o povo, em seu poderoso imaginário coletivo, é também criador.
A literatura, como o rio que atravessa os campos de nossa memória cultural, não pode ser contida. As suas margens são fluidas, como o próprio conceito de autoria. Um escritor é, na verdade, um guardião da herança espiritual da humanidade, que preserva a memória para que ela seja reinventada e resignificada pelas novas gerações, que a mantém desse modo dinâmico, recriando-a e não apenas recitando-a, pois só o espírito vivifica.