Princípio de 2025 e não me sai da cabeça a preocupação: Pobre Marte... É que, sem por isso procurar, pus as vistas num desses vídeos do Youtube com sabor de documentário acerca do processo de colonização desse nosso vizinho de parede e meia, se a distância que nos separa for tomada, como assim deve ser, em escala cosmológica.
Logo nos primeiros minutos, surpreendi-me com o vocábulo “terraformação”. Sim, tal substantivo, traduzido do inglês, já existe numa infinidade de línguas. Assim, também, o verbo “terraformar”. Serve, você já percebeu, para designar os esforços destinados a fazer de Marte um planeta com o barro, as águas, as nuvens e a atmosfera terrestres.
Os procedimentos, pude entender, variam de cientista para cientista, todos com o juízo dos respectivos patrões. O pessoal de Elon Musk, por exemplo, deseja começar o serviço com explosões atômicas nas calotas polares marcianas. Isso evaporaria a enormidade de gelo acumulada nessas regiões, posto que em atmosfera rala o que sobe também desce. Neste caso, em forma de chuva. Em pouco tempo (cosmologicamente falando), Marte teria uma atmosfera grossa, mares, lagos, musgos e árvores a partir de mudas e sementes propiciadas pelos colonizadores.
Coitado de mim que já quis uma marcianita depois de certa desilusão amorosa. Uma menina que não bebesse, não fumasse nem dançasse rock’n roll, exatamente como a garota pretendida pelo carioca Sérgio Murilo na fase anterior à da Jovem Guarda. Falo do movimento musical no qual bateu ponto gente como Carlos Gonzaga, Ronnie Cord e os irmãos Tony e Celly Campello.
Branca ou preta, gorduchinha, magrinha, baixinha ou gigante, mas em todo caso sincera e fiel, minha alma gêmea marciana não aguentaria as bombas de Musk, a quem o velho Trump, antes do Ano Novo, ofereceu a Chefia do Departamento de Eficiência Governamental dos Estados Unidos, coisa criada a capricho.
Outros cientistas, felizmente, desejam uma mudança mais branda. Propõem a terraformação mediante extração de oxigênio e hidrogênio das rochas e dos ares do planeta vizinho riquíssimo, também, em CO2, gás carbônico, meus caros. O estúpido que sou entendeu que robôs terrestres, em processo laboratorial antes da chegada em massa dos humanos, trocarão o “C” pelo “H2” para conseguir água e oxigenação atmosférica em mistura adequada aos que tenham os pulmões e os narizes que temos. Algo mais demorado, porém, mais seguro.
Os primeiros exploradores, se tudo sair como planejado, habitarão cidadelas sob domos transparentes com atmosfera pré-fabricada. E cultivarão frutas e hortaliças. Depois disso, milhões de humanos lá viverão com um único incômodo: o da baixa gravidade comparada à do planeta de origem. Mas aos poucos se adaptarão ao novo mundo. Geração após geração, as crianças ali nascidas hão de ter batimentos cardíacos, capacidade pulmonar, altura e peso cada vez mais diferentes disso que têm e terão as terráqueas.
Estimam-se que os primeiros passos humanos em Marte se darão por volta de 2035. Ou seja, a maioria dos nossos netos, se assim acontecer, verá essa coisa pela tevê. O primeiro bebê marciano, desse modo, nascerá em 2065.
Preciso avisar. Não há força que me faça crer em que a raça humana terá em Marte, algum dia, um mundo de paz, justiça e igualdade. Se a ciência e a tecnologia avançarem em ritmo mais veloz do que o da superação dos nossos pecados e mazelas, transportaremos para Marte e outros ambientes do sistema solar a exploração dos semelhantes, a ganância, a cobiça e, portanto, as guerras.
Alguns desses projetos propõem cidades subterrâneas com fábricas, lojas, hospitais, escolas e céu artificial antes que o genuíno esteja adequado à humanidade. Também (êpa!) mansões para os ricos, casas de médio porte para os remediados e apartamentinhos para aqueles com pouca grana: o pessoal da mineração e do trabalho mais duro.
Há, no meio acadêmico, quem nos advirta do quebra-pau já na Lua, um trampolim para o lançamento a custo muito mais baixo (quando comparado ao decorrente da força gravitacional terrestre) de naves com gente e equipamentos destinados à vida e ao progresso em solo marciano. Será briga por minérios raros e pontos estratégicos, porquanto tais explorações não serão exclusividade de uma nação sozinha.
Pensemos, agora, num mundo onde se viva por mais de 300 anos e se disponha de cápsulas da vida, não para que sejam engolidas, mas para que nelas se entre de corpo inteiro e ali se permaneça enquanto robozinhos quase do tamanho de micróbios consertam o que dentro de cada pessoa possa estar errado. Tudo isso sem os planos de saúde que já nos custam os olhos da cara e sem as filas intermináveis do sistema de saúde pública.
Mas isso nos traz a pergunta: por que não dispormos disso tudo, na Terra mesmo? Não seria melhor ajeitarmos as coisas por aqui antes de espalharmos nossos erros, infortúnios e tragédias pelo universo?
O sujeito que eu sou e com as limitações que tenho ainda teima, ocasionalmente, em ver cada réveillon com os olhos da esperança, como se isso, por decreto celestial, fosse o momento das transformações. Sem qualquer explicação minimamente razoável, inclino-me a crer, vez em quando, em que o início de um novo ano nos vem com a promessa exata, inequívoca, de um tempo ao longo do qual estaremos mais tranquilos, mais prósperos, mais sadios e mais felizes.
Confesso: ainda me comove a lembrança dos velhos calendários de parede com aquelas duas figuras simbólicas: a do Velhinho que se despedia do tempo e a da Criança que nele ingressava. Ele com sua mala pronta, sua bengala e sua tristeza e ela, risonha, com seu ânimo contagiante e seus bons votos. Pequeno, eu me compadecia do idoso e me deleitava com a aparição do menino. Dois sentimentos antagônicos numa cabeça de nove, ou dez anos.
Agora, quando trago no corpo e na alma o desalento daquele Matuzalém de papel e tinta, ocorre-me que tive em 2024 o que no seu transcurso fiz por merecer.
Só não terá sido assim com cada um de nós porque há, entre nossos semelhantes, aqueles para os quais a vida e suas consequências negaram, sem remédio, toda e qualquer possibilidade de progresso e redenção social. De resto, entendo o tempo como assim o entendeu Drummond.
Lembremos da sua “Receita de Ano Novo”:
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
E que assim nos seja.