Há alguns anos, compareci ao arquivo da Arquidiocese da Paraíba, para verificar uma curiosidade pessoal “de ouvir dizer” como se verdade histórica fosse. Minha curiosidade era se realmente crianças que nasciam escravizadas tinham por “padrinhos/madrinhas” santos católicos no momento do batismo. E, como resposta à minha curiosidade, verifiquei que não procedia tal informação, ao mesmo tempo em que estava diante de novas informações com base em dados constantes dos livros dos registros de batismos.
A expressão "ingênuo" se refere às crianças nascidas livres, independentemente da cor da pele. Por isso, utilizamos a expressão “nascidos escravizados” em oposição à expressão "ingênuo". De 12.03.1833 a 19.11.1833, consta um total de 28 crianças nascidas escravizadas.
No arquivo fui informada de que podem apenas ser consultados os livros de registro de batismo da antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves a partir do ano de 1833, devido ao fato de que a Paróquia é muito antiga (século XVI) e os livros de batismo anteriores ao referido ano simplesmente desapareceram. Pretendo tratar as informações colhidas limitadas ao Livro de Registro de Batismos do ano de 1833 em vários artigos a serem publicados aqui no Ambiente de Leitura Carlos Romero. Mas comecemos com os dados gerais que foram colhidos.
A primeira observação a fazer é que consta um total de 297 batizados, sendo que 28 batizados foram referentes aos párvulos pretos ou pardos que nasciam escravizados, de mães escravizadas. Houve casos de mulheres negras de nação, porém forras, que tinham filhos com homens escravizados, mas, pelo fato de as mães serem livres, os filhos não nasciam escravizados. No caso das crianças filhas de mulheres pretas ou pardas escravizadas, tinham a paternidade reconhecida quando suas mães eram casadas com homens negros também escravizados. As demais mulheres pretas ou pardas que tinham filhos “naturais” - ou seja, filhos havidos fora do casamento, mas frutos de relações entre duas pessoas não impedidas de se casarem entre si - não tinham a paternidade de seus filhos reconhecida, salvo exceções.
Parece óbvio não ter a paternidade reconhecida, haja vista não serem casadas. Mas não. As mulheres brancas pobres, pretas e pardas forras tinham em sua maioria a paternidade de seus filhos reconhecida sim, embora o comum, até mesmo para mulheres brancas, fosse o que chamamos hoje de "união estável". É interessante observar que, entre pessoas negras alforriadas, era mais comum o matrimônio e prole legítima, assim como entre os casais de origem indígena (Potiguaras da Baía da Traição) que batizavam seus filhos na Antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves, os quais casavam e tinham sua prole “legítima”, conforme termo técnico utilizado até recentemente em Direito de Família para distinção da prole havida em virtude do casamento.
Outro aspecto interessante da Cidade da Paraíba do ano de 1833 é que temos uma cidade com relacionamentos inter-raciais entre as pessoas livres, sendo comum a união de homens brancos com mulheres pretas ou pardas alforriadas e mulheres brancas de origem pobre com homens pretos e pardos. Isso nos leva a questionar o porquê de mulheres negras escravizadas não terem o reconhecimento da paternidade de seus filhos pretos ou pardos que já nasciam escravizados, corroborando a tese já conhecida dos constantes estupros contra mulheres negras, haja vista que somente negras escravizadas casadas com negros escravizados tinham a prole com a paternidade reconhecida, diferentemente da população pobre, branca, mestiça ou preta alforriada, que, apesar de viver em união estável, tinha sua prole com o nome do genitor.
Citemos alguns casos, como o da párvula parda Benedita, que nasceu escravizada, filha natural de Catharina, natural de Angola e “pertencente” a João Nepomuceno Borges. Teve como padrinho Antonio Paz da Cunha e como madrinha “(nome ilegível no livro) de Almeida”. Era uma criança parda que nascia escravizada e batizada em 12.02.1833 aos 46 dias de nascida.
Exemplos das crianças negras escravizadas que tinham a paternidade reconhecida devido ao matrimônio dos pais, também escravizados:
1. Thimóteo, párvulo batizado em 03.03.1833 pelo Padre Joaquim Antônio Leitão, filho legítimo de Vicente de “Góvea” e Lourença Maria, ambos escravizados, tendo a criança como padrinhos Martinho Ribeiro e Maria Joaquina.
2. Joze, párvulo batizado em 30.09.1833, com 1 mês e 4 dias, filho legítimo de Marcelino Correia e de Maria Luíza, “crioulos captivos” do Senhorio do Engenho Gargaú, da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento (Santa Rita).
Observem que eram comuns batizados de crianças nascidas na Capital paraibana (Freguesia de Nossa Senhora das Neves), de Santa Rita (Freguesia de Nossa Senhora do Livramento), Ingá e Baía da Traição, áreas que hoje correspondem à Arquidiocese da Paraíba.
Também havia exceção à regra de filhos “naturais” entre pessoas escravizadas com o reconhecimento da paternidade, bem como de mulheres escravizadas unidas com homens livres:
3. Domingos, párvulo batizado em 21.02.1833 aos 03 meses pelo Padre Bartholomeu Alves de Almeida, filho natural de Joaquina “escrava” e João José Lopes. Foram padrinhos João Thomas e Maria do Bonfim.
4. Joze, párvulo batizado em 13.10.1833 aos 2 meses, filho natural de Maria Crioula ‘escrava” e Pedro Joze de Gandra. Os padrinhos foram Francisco Soares “Serino”,casado, e Mariana Crioula, solteira, “escrava” de Joze Joaquim Gonçalves.
Percebam que a maioria das crianças que nasciam escravizadas possuíam madrinhas, o que é uma exceção, haja vista que, como mulheres não podiam ser tutoras (com exceção das mães e avós), a figura da madrinha era apenas decorativa e dispensável.
No próximo artigo falaremos das crianças que nasciam escravizadas e batizadas em perigo de vida e das características das crianças expostas. Em outros textos, também traremos dados sobre a figura da madrinha e do padrinho e as consequências civis de suas obrigações, o conceito de órfão e também o perfil das pessoas que tinham proles “legitimas”, isto é, quem casava nos idos de 1833 na antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves e as relações interraciais entre pessoas alforriadas e não escravizadas.