POEMAS DO LIVRO “Manual de Estilhaçar Vidraças” (Editora COUSA – 2022)   MANUAL DO SANTO AMPARO Apoio a cabeça em mão que ...

O Estalo da Palavra (XXIX)

poesia capixaba espirito-santense jorge elias neto

POEMAS DO LIVRO “Manual de Estilhaçar Vidraças”
(Editora COUSA – 2022)



 
MANUAL DO SANTO AMPARO
Apoio a cabeça em mão que não é minha. Ela me batiza, me passa a unha, acaricia, desmancha o cabelo, me põe medo tampando os olhos, empurra o nariz contra a porta, me sufoca com o travesseiro, encosta a guimba do cigarro, me intimida, espeta achas, apazigua as rugas dos anos, sustendo erguida a face tombada e espalha em meus lábios o sabor das batalhas.


MANUAL PARA MOLHAR A PALAVRA
“A palavra é já minha única maneira de ressuscitar-me.”
Maiakovski
Palavra é fatalidade, cerol escorrido da garganta do Mundo, febre de tecer morte doida, companheira irrecusável. Palavra é troço sem fundo, semente que brota na fenda do punhal. Palavra é o soldo da boca carente, vapor do submundo da alma. Palavra é calma e destempero, jazigo, ruína e culpa. Palavra é sina do desencontrado, recado e arrependimento, é o unguento do trago. Palavra é zelo com o indomável. É o todo inacabado às vésperas do último engasgo.


MANUAL DE RESGATE DE UM POETA
Ah, esse eu telúrico, sacro refúgio do espanto, não será ele o manto que se estende sobre a febre, − quebranto dos olhos? (Somos parte água, parte segredo.) Um algo manso que se arvora a enfrentar tempestades, a disseminar ruídos de despedida, a arrematar com o pranto o silêncio contido da sutil delicadeza dos consumidos pelo engano? (A marcha do só é a mesma marcha da multidão.) Não cumpre os passos, vai alhures, circundando um Mundo de cordilheiras infinitas, lugar descartado no tempo? (O infinito é um quase distendido.) O entusiasmo desacelerado de um pessimista, ao recordar o posto e o dito no derradeiro sufrágio? (Mais se assemelha o que se sente culpado.) O esgar pretérito pelo indecifrável, o algo plácido derramado na transparência do desengano? (Muito se pede no primeiro pranto.) O testemunho do descontínuo da panaceia divina, desatino e receio da reta finda? (A última centelha se ressente do frio.) O que do repasto da morte faz a rotina da vida?


MANUAL DAS SOBRAS
Sobra nas mãos uma bolha de nada, um vazio que não me cabe.


MANUAL SOBRE FERROLHOS DA PORTA DE SAÍDA
E se cortasse os pulsos contornando o silêncio? Morreria ou se transformaria em outra ilusão? Materna sombra, degredo dos santos, cama de ossos e assombros, de perdas e segredo da alma buliçosa.


MANUAL PARA PREENCHIMENTO DE PROPOSTA DE EMPREGO (COM QUESTIONÁRIO)
O que te define: o trajeto do destino ou a trajetória do acaso? O objeto que olha ou a ilha que aflora? A memória ou a arrelia da voz e a vã filosofia? A marca na pele de uma despedida? A raiz como causa da coisa absorvida? Uma casa de excomungados ou um projeto de emoção? Barba, rebarba, destemor e gratuidade do estrondo? A ingênua silhueta do absoluto a te inspirar insônia? Ranhuras no convívio , rigidez na meta? Dois mais dois ou a placidez de esteta? Remora de ansiedade a semear conflito, ou solidão do bardo no balcão do abismo? Digitas com todos os dedos, plantas samambaias nas trincheiras? Obs: Preencher os espaços em branco com objeções ou espasmos, espantos, dizer o que te faz único, se absorves com atenção o subentendido, e se, na falta de café e pão, te basta a água que brota dos escombros.


MANUAL SOBRE MANUAIS
No fim, resta o desgaste das palavras empobrecidas pelo reúso, os retalhos repetidos na colcha que mal cobre o cansaço dos pés.

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