Ira (mῆνις, menis)* é a palavra com que Homero inicia a Ilíada. Não é uma ira qualquer. Menis é uma emoção extrema, que ultrapassa a experiência cotidiana do humano.
É a ira cósmica, a dos deuses. Por isso, quase sempre os tradutores acrescentam a ela um adjetivo: tenaz, funesta. No grande poema homérico, a ira de Aquiles surge como uma força que irrompe em ações com consequências devastadoras. Ela ultrapassa os limites do corpo do herói grego e altera o curso de uma guerra, faz as almas de muitos guerreiros baixarem ao Hades e seus corpos servirem de pasto a cães e abutres. Milênios depois, essa mesma força voraz continua a espreitar o coração humano, desta vez no cenário de um mundo interconectado, no qual a comunicação instantânea a amplifica e a torna um dos maiores desafios contemporâneos. Homero então torna-se atual, pois fala de nós. A ira de Aquiles é a mesma que nos habita, a que hoje se amplifica em hashtags, em comentários inflamados e guerras virtuais que, assim como na de Troia, não têm vencedores.
Na Ilíada, a ira de Aquiles é desencadeada pelo orgulho ferido diante da humilhação infligida a ele por Agamêmnon e depois pelo desejo de vingança após a morte de Pátroclo. A nossa ira no mundo virtual encontra igualmente “gatilhos” múltiplos: uma postagem, uma opinião ou postura discordante, um comentário considerado ofensivo ou simplesmente a vontade de criticar de forma perversa. O alcance global das redes sociais e o distanciamento físico converteram a ira em uma performance pública, incentivando a indignação coletiva, o linchamento virtual e a popularização de uma figura cujo nome vem emprestado do inglês: haters (odiadores). Eis no que hoje milhares se transmudaram: odiadores profissionais, ativos participantes em batalhas virtuais desnecessárias travadas diariamente (e rapidamente esquecidas, pois logo surgirá outra novidade para engajar e atrair os furiosos). Engajados nas disputas, deixamos emergir arrogância, desprezo, maldade, julgamentos cruéis e superficiais. Lutando assim, cultivamos um vício mental, o desamor, esquecidos de que, no final, a guerra também nos consome. O velho Homero bem sabia disso. Há milênios sua voz repete a história de um jovem e poderoso guerreiro que nos lega uma lição valiosa: a ira de um homem pode destruir a ele mesmo e a uma geração inteira.
As redes sociais são muito sedutoras. São como uma terra desconhecida ou o oceano, que parecem oferecer apenas belezas, mas escondem perigos aos descuidados. Elas ofertam uma promessa de controle, uma ilusão de que podemos moldar narrativas, que as nossas vozes individuais têm grande importância. É uma promessa traiçoeira, ouro de tolo. Visibilidade em lugar da paz de espírito, horas envolvidos em discussões estéreis, arruinando os nossos preciosos e curtos dias neste mundo.
No poema homérico, os deuses manipulam os humanos, influenciando suas escolhas e exacerbando os conflitos. Na vida digital, outros "deuses", os algoritmos, comandam e ampliam a ira individual. Postagens controversas ou furiosas recebem mais atenção, alimentando ciclos intermináveis de debates acalorados e agressões. Tudo a serviço do engajamento. O problema é que, ao contrário dos deuses olímpicos, os algoritmos não têm planos claros – apenas consequências imprevisíveis. E tais consequências desabam unicamente sobre as marionetes.
Como evitar essa ruína do espírito? – é o que me pergunto frequentemente.
Respondo-me dizendo que há de se meditar sobre a condição humana enquanto aqui estamos. A exemplo de Aquiles, podemos encontrar espaço para a redenção. Ao devolver ao idoso Príamo o cadáver de seu filho, Heitor, pela primeira vez Aquiles faz um gesto que transcende a guerra e sua sede de glória. Isso não resolve a tragédia em Troia, mas humaniza o herói e o transforma. Em meio às intermináveis disputas digitais, a compaixão pode fazer a diferença. Ela começa no momento em que o herói que existe em nós decide parar de cultivar ódio, pois se dá conta que a ira virtual não resolve os problemas que diz enfrentar - ao contrário, frequentemente desvia a atenção das soluções e alimenta ciclos de vingança e polarização, gerando cansaço mental, ciclos de stress, tristeza, depressão e ansiedade.
Na Ilíada, outra palavra tem grande peso - moira (destino), a força que determina os rumos da nossa vida. Nós, humanos, temos uma única certeza nessa caminhada breve e frágil – um dia estaremos mortos. Ainda assim, tentamos desesperadamente escapar a esse destino. Lutamos contra a mortalidade com avanços médicos, desafiamos os limites da natureza com tecnologia, e sonhamos com o controle absoluto de nossas vidas. Então vêm pandemia, terremotos, enchentes, tufões, acidentes, incêndios e conflitos globais que nos lembram da existência de forças além de nosso poder. Resta-nos, como Aquiles, aprender a aceitar a inevitabilidade de certas situações, enquanto encontramos significado em como escolhemos enfrentá-las. No nosso caso, focar no que podemos mudar: nossas ações, nossas escolhas e nosso impacto no mundo.
Mandatório se concentrar na luta contra forças maiores e na busca por algo que nos pacifique em meio ao caos. A ira exacerbada que expressamos nas redes sociais é o eco de um passado remoto, ancestral, que insiste em ser belicoso e dominar o outro pela força. É necessário reconhecê-la a fim de poder substituí-la por outros valores e virtudes: compaixão, coragem, paciência, ânimo para a reconciliação. Soou piegas? Natural. Para muitos, a postura irada parece mais atraente, moderna, corajosa. Eu, no entanto, acredito que há mais coragem em encarar os próprios demônios, reconhecê-los e domá-los. Autocontrole exige muito de nós. Ele é a força que mantém subjugado o demônio interno e seus ímpetos.
Embora não esteja aqui para ver as guerras de hashtags, os cancelamentos, a ansiedade por fama e os ataques a desconhecidos, Homero descreveu tudo isso com precisão. Nós, humanos, não mudamos tanto assim. Apenas os cenários são outros. Resta saber se no final da nossa epopeia particular sucumbiremos à fúria coletiva que nos cerca ou se conseguiremos ser o mais raro dos heróis, o que vence a si mesmo.
Originalmente publicado em soniazaghetto.com.