Em uma reunião descontraída com os amigos, o assunto em pauta era a poesia de Augusto dos Anjos. Entusiasmado, dei-me o prazer de ler...

Estesia e técnica

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Em uma reunião descontraída com os amigos, o assunto em pauta era a poesia de Augusto dos Anjos. Entusiasmado, dei-me o prazer de ler e explicar uma estrofe de um de seus poemas, achando que todos iriam sentir o mesmo deleite que eu. Essa é a primeira ilusão que devemos deitar fora, com relação à Arte: sendo o processo de recepção misterioso e cheio de melindres, nem todos a receberão da mesma maneira. Constatei o sorriso de contentamento de uns e a anuência de outros, mas a desilusão veio, ainda que com elegância, na ironia desferida por um dos amigos, dizendo temer as análises dos críticos, porque a poesia de Augusto dos Anjos é maior do que eles, críticos e análises,
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e já foi salva pela população, que nada entende de métrica, de ritmo, de rima ou de qualquer outra coisa que cheire a uma explicação técnica.

É verdade que a poesia de Augusto dos Anjos é maior daquilo que poderia dizer qualquer crítico. Sempre defendi, aliás, que melhor do que se ler sobre o escritor é ler o escritor. É verdade que a poesia de Augusto dos Anjos está na boca do povo, mesmo o povo iletrado, o povo sem escolaridade e alguns representantes do que se considera o marginalizado socialmente, como bêbados, mendigos, prostitutas. É verdade que para o grosso dos leitores, mesmo os que têm uma escolaridade superior, não é necessário o conhecimento da técnica utilizada na poesia de Augusto dos Anjos, para que se realize a magia da explosão estética. Mas só isso não é suficiente. Há que se aliar estesia e técnica, para que exista uma maior fruição da obra de Arte. E aqui, sigo os ensinamentos de Sócrates a Íon, no diálogo platônico homônimo.

Vejamos um exemplo, que direi grosseiro, mas é o que me ocorre, nas circunstâncias em que eu me encontrava. Na mesa de amigos, o único que tinha conhecimento técnico suficiente para fazer a descrição da ossatura do poema era eu, devido à minha formação em Letras. Ressalte-se que isso não significa que aquele que não possui uma formação em Letras não possa adquirir esses conhecimentos técnicos,
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nem que eu me considere melhor do que os demais. Havia ainda outros três com formação em engenharia civil, a engenharia da construção. O exemplo que vou relatar está relacionado com essas formações específicas.

Para os três amigos engenheiros, parece-me interessar a fruição da Arte, independentemente de como ela foi feita, pois ao se colocarem diante dela, são atingidos pela estesia que dela promana. A técnica, portanto, seria dispensável. Constatem que estou utilizando “seria”, não “será”. Voltaremos a esse ponto. Com relação à escolha de suas moradias, no entanto, acredito que eles primem pelo prazer e pelo conforto que elas poderão e deverão proporcionar, mas tenho certeza de que eles hão de expressar uma preocupação com a técnica da construção, devido a suas formações específicas, tendo em vista a necessidade de se sentirem seguros sob o teto que os abriga. Com relação à minha moradia, busco o prazer e o conforto, sem me preocupar com os detalhes da construção, apenas tendo o cuidado de saber o histórico de idoneidade e de segurança da construtora.

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Como professor de Literatura, reajo exatamente como os meus amigos engenheiros, diante das suas moradias. A literatura me ganha pela sua capacidade de provocar sensações, que podem ser boas ou ruins, o que seria o primeiro contato com o texto, mas vou em busca de saber como ele foi construído, procurando entender os detalhes da técnica empregada. Há, no entanto, uma diferença, em relação aos meus amigos e suas moradias. O conhecimento da técnica da construção civil não lhes aumentará o prazer de morar onde escolheram. Só lhes proporcionará a segurança de ali poder viver, sem medo de um desabamento.

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No meu caso e no caso do professor de Literatura, em geral, o conhecimento da técnica, não só nos dará a ideia de como o texto foi feito, mas vai ajudar-nos a descobrir novas camadas da linguagem, muitas vezes multiplicando o efeito estético, daí a necessidade de se aliar uma coisa à outra: estesia + técnica = mais estesia.

A estrofe de Augusto dos Anjos que li, na ocasião, é a primeira do poema “Noite de um Visionário”, cuja beleza não fica atrás de outra estrofe, pertencente a “Monólogo de uma Sombra”. Vejamos, inicialmente, a primeira das estrofes:

Número cento e três. Rua Direita. Eu tinha a sensação de quem se esfola E inopinadamente o corpo atola Numa poça de carne liquefeita!

O que se pode dizer inicialmente é que a estrofe não traz qualquer dificuldade seja no léxico, seja na sintaxe, o que, no contexto da poesia de Augusto de Anjos, parece ser de uma simplicidade ímpar. Talvez, a única forma mais refinada seja o advérbio inopinadamente, de que falaremos no seu devido tempo. Essa primeira estrofe do poema e se apresenta com uma forma ambivalente de objetividade e subjetividade. A objetividade que se encontra no primeiro verso é de uma clareza incontestável: são duas frases nominais, curtas, sincopadas, que nos fornecem um endereço, de maneira não só objetiva, mas, sobretudo, concisa – Número cento e três. Rua Direita. É a única vez, dentro do Eu,
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em que podemos ver uma referência direta e com uma inegável ligação autobiográfica. O que nos interessa, contudo, é como essa referência, que pode ser tomada como pessoal, se expande, à medida que o poema se desenvolve, e, na subjetividade alucinatória do eu-lírico desfaz o biografismo, tornando-se apenas poesia, pura poesia.

O segundo verso ainda mantém a tranquilidade do primeiro, mas a objetividade cede espaço para a subjetividade, com a realidade da referência residencial se dobrando ao sensorial. O eu-lírico, depois de dirigir o seu olhar para fora, volta-o para si mesmo, para o seu íntimo e começa a expor a sua dor – Eu tinha a sensação de quem se esfola. Ainda assim, podemos dizer que o ritmo com que se diz esse período composto de duas orações apresenta certa serenidade, tanto no que diz respeito ao decassílabo, quanto na simplicidade da elocução. A formulação do verso deixa, no entanto, entrever a ansiedade do eu-poético, a quem o escuta e não se contenta apenas com o ler, expressa na aliteração do fonema fricativo sibilante /s/ (Eu tinha a sensação de quem se esfola), cuja associação à assonância dos fonemas nasais – /ĩ/, /ẽ/, /ãw/, /ẽ/ – abre espaço para que se frua o desmoronar da objetividade e da serenidade inicial, como vamos observar nos versos seguintes.

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O terceiro verso é crucial para o poema, porque ele determina o início da transformação da calma objetividade inicial – E inopinadamente o corpo atola. Até então, os dois decassílabos iniciais são independentes, não necessitando de apoio rítmico dos demais. Eles se bastam a si mesmos na sua métrica e no seu ritmo. Com o terceiro verso é diferente. Para manter o ritmo e o decassílabo, ele precisa do apoio da última sílaba do verso anterior: o /e/ inicial do terceiro verso se aglutina, naturalmente, à sílaba átona final do verso anterior, que sempre é desprezada na escansão portuguesa – eu tenho a sensação de quem se esfola e (leia-se /esfóli/).

É assim que o advérbio inopinadamente se torna o hemistíquio do decassílabo, trazendo no seu interior duas das três pausas do ritmo ternário que caracterizam este tipo de metro, uma pausa na subtônica (4ª sílaba)
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e outra na tônica (6ª sílaba) – i/no/pi/na/da/men/te/ – como se exige do decassílabo heroico. Ao mesmo tempo, o advérbio faz jus ao seu sentido de “algo que acontece de modo inesperado, imprevisto, de súbito”, ressaltando a ideia de algo que ocorre num ritmo veloz, incapaz de ser contido. A leitura de tal verso nos obriga a escandir o advérbio, mas escandi-lo na rapidez de um galope, como a cantoria de viola costuma tratar o martelo agalopado. A estrofe mudou completamente a sua maneira de ser encarada, passando de um polo a outro; da placidez do verso inicial à rapidez do terceiro verso. Nessa mudança, o eu-lírico, admirado – a exclamação nos autoriza a dizê-lo –, vê-se naufragar, com o corpo atolando-se vertiginosamente numa poça de carne liquefeita!

O último verso acaba de vez com qualquer intenção de serenidade e calma que o primeiro verso pode sugerir. A imagem é forte, se pararmos para refletir na sequência da estrofe. A hipérbole de um corpo atolado em uma “poça de carne liquefeita” nos dá a dimensão da subjetividade, a um só tempo, expressionista e surrealista, compondo uma estranha visão na mente do leitor e preparando-o para a alucinação desenfreada que vem a seguir puxada pelo verso inicial da segunda estrofe e reiterada pelos dois superlativos absolutos sintéticos – acérrima e atormentadíssima – que, por sua vez, confirmam a absoluta situação hiperbólica, de uma alucinação que se torna tátil (itálicos nossos):

– “Que esta alucinação tátil não cresça!” – Dizia; e erguia, oh! céu, alto, por ver-vos, Com a rebeldia acérrima dos nervos Minha atormentadíssima cabeça.

Atentemos, agora, para a construção e para o emprego da rima, na estrofe 14 de “Monólogo de uma Sombra”, em que substância e técnica – engenho e arte, como diria Camões – se amalgamam, em rara beleza estética:

É uma trágica festa emocionante! A bacteriologia inventariante Toma conta do corpo que apodrece... E até os membros da família engulham, Vendo as larvas malignas que se embrulham No cadáver malsão, fazendo um s.
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Não se trata de uma estrofe de difícil compreensão, no que diz respeito ao significado, embora, menos clara do que a anterior de “Noite de um Visionário”. Sem muita dificuldade, o leitor sabe encontrar-se diante de uma situação em que o corpo em decomposição provoca asco. No contexto do poema, apresenta-se aos parentes a visão desse corpo sendo comido pelos vermes. Observa-se também que não há um vocábulo complexo, a não ser pelo sintagma “bacteriologia inventariante”, em que o substantivo pertence à Biologia e o adjetivo ao Direito, mais precisamente ao direito de sucessão. O emprego de “larvas”, em lugar de vermes ou tapurus, este último mais popular, dá à estrofe um sentido eufêmico. Do mesmo modo, o termo “malsão” é utilizado eufemicamente, para designar apodrecido, embora no terceiro verso o verbo “apodrecer” apareça. A distância entre os vocábulos,
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porém, permite o eufemismo, suavizando a ideia apresentada no início. Nada disso, porém, poderia caracterizar a estrofe como hermética ou complexa, do ponto de vista lexical ou sintático.

Quando passamos à análise da técnica, da chamada arte da criação poética, vemos como o poeta transforma em matéria de rara beleza estética e plástica uma cena fúnebre, desagradável à vista e aos demais sentidos. Logo de início, a estrofe se abre com um oxímoro, de que a ironia não se descola – “trágica festa emocionante” –, criando uma expectativa no leitor, cujo sentido festivo começa a ser quebrado, para que reste apenas o trágico, na metáfora expressa pelo decassílabo com apenas três palavras, sendo uma delas, mínima – “a bacteriologia inventariante”. Os vermes, como numa partilha de bens, fazem o inventário do corpo apodrecido pelas bactérias, porque pelo direito de sucessão natural o cadáver lhes pertence – é a “mecânica nefasta” (MS, estrofe 8), a que toda matéria está, pelas leis da natureza, reduzida. Dessa mecânica não escapa o Filósofo Moderno, cujas vigílias, para entender “a vida fenomênica das Formas” (MS, estrofe 8), reduzir-se-á à “herança miserável dos micróbios” (MS, estrofe 15), reiterando o léxico do direito. O fenômeno natural de decomposição de um corpo, pela ação das bactérias se torna metáfora e matéria poética, não se restringindo o poeta a uma descrição da “abstrusa ciência fria”, que ele condena nesse mesmo poema (estrofe 27).

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Ao mesmo tempo, a criação poética nos revela como o léxico de Augusto dos Anjos não se exaure no pretensamente científico, nem se condena a ser submisso ao cientificismo da época. Operando, na realidade, a sua transformação à luz da criação literária. Por fim, vemos a pedra de toque do seu engenho, quando a rima de “apodrece” se faz com a letra “s”, em itálico, na primeira edição, tornando a letra ainda mais encurvada e sinuosa, de modo a imitar o movimento dos vermes se refestelando na festa trágica do corpo em desintegração. É o processo da imitatio, que resulta numa perfeita simbiose de fundo e forma, em que podemos ver, apesar do estatismo da folha de papel, mais do que o verso, a poesia em movimento, numa esplêndida metáfora visual.

Reafirmamos, portanto, que é importante constatar a aceitação popular da poesia de Augusto dos Anjos, por mais difícil que sejam o seu léxico ou a sua sintaxe. Por outro lado, faz-se necessário reconhecer que a técnica
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revela a profundidade e as possibilidades da linguagem. Nenhuma palavra se encontra gratuitamente, nas duas estrofes. O poeta pensou-as e ali colocou-as, de modo consciente ou inconsciente, porque ali era o seu lugar. Não há nada sobrando ou faltando. Do mesmo modo, os termos técnicos, de que nos utilizamos para descrever como se construíram as duas estrofes, não são invenções de críticos, eles existem na estilística da língua e os poetas, mesmo que não saibam de seus nomes, auxiliam-se de seus efeitos, porque sabem e intuem que eles ajudam a construir um impacto no leitor muito maior do que o revelado pela aparente expressão linguística, que se encontra diante dos olhos. Arte é inspiração, mas também é construção. E a construção, só possível com a inspiração ou criatividade, como queiram, ajuda a esconder com o dito o não-dito. Mais do que a arte do dito a literatura é a arte do interdito.

Por fim, tenho a plena convicção de que nós humanos não somos nada sem a palavra. Ela não é apenas o que nos diferencia das outras espécies animais. Necessitamos dela e de seus vários níveis e formas para operar a transformação da língua em linguagem. O poeta, contudo, necessita muita mais e cabe-lhe descobrir novas camadas de linguagem dentro da expressão do dia a dia, inovando-a, renovando-a, recriando-a em possibilidades infinitas que nos revelam a magia da criação literária. Negar isso é negar a própria versatilidade da linguagem que consegue transformar alguns poucos fonemas em palavras que se articulam infinitamente e nos descortinam novos mundos por trás e muito acima do que já pensamos conhecer, aumentando o grau de fruição estética.

Ave, Augusto!

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  1. Bravíssimo, Milton. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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  2. Obrigado, Gil!

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  3. Magnífica aula! Dizer Parabéns é muito pobre para tanto saber.

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