Já andei comentando neste espaço algumas das proezas de Dona Zuleika, uma cigana degarrada da tribo e que foi viver o outono da vida c...

Dona Zuleika, o Coronel e Nersinho

conto fazenda mantiqueira
Já andei comentando neste espaço algumas das proezas de Dona Zuleika, uma cigana degarrada da tribo e que foi viver o outono da vida como agregada na granja dos pais de Ideto, um japonesinho (na verdade era nissei), meu colega de classe na escola e parceiro em minhas primeiras aventuras.

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Pois Dona Zuleika e seus enigmas (ela era cheia de mistérios) trouxeram-me momentos de muitas dificuldades, pois o que eu fora capaz de vê-la fazendo, quando contava o ocorrido em casa ninguém acreditava. Fui por isso admoestado, levei broncas homéricas e, por muito pouco, deixei de levar uma coça para aprender a não andar esparramando mentiras por aí.

Primeiro, comentei que ela se alimentava comendo rabo de lagartixas. Depois contei que ela fervia água na panela, tirando seu olho de vidro e apontando-o para o fundo da vasilha. Não bastasse, revelei que essa cigana separava os pintainhos recém nascidos de acordo com o sexo das avezinhas, na medida em que elas comiam minhocas. Os machos comiam mas minhocas fêmeas. Os pintinhos que eram fêmeas comiam as minhocas machos. Ela não errava um!

Isso, meus amigos, passados mais de sessenta anos, juro de pés juntos que tudo que acabo de contar presenciei com esses olhos que a terra não vê a hora de comer.

Meu pai fez-me prometer que jamais traria novamente para casa aquelas maluquices e que se eu viesse com outros fuxicos iria entrar no coro para não crescer
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mentiroso como uns tios dele lá de São Bento do Sapucaí.

Mas então, com quem dividir aqueles alumbramentos, aquelas magias, se não com os de minha família? Ideto dizia que era para eu não me importar e que quando eu crescesse poderia contar para meus filhos.

Mas o mundo, como dizem, é uma caixinha de surpresas e uma tarde estava eu, lá na granja de Ideto, tirando uma prosa com o japonês antes dos deveres escolares, quando vi algo que foge ao que qualquer ciência pode explicar.

Era uma tarde de sábado e resolvi chamar meu pai para ver (e se ele visse não mais me chamaria de mentiroso) como eram os Mocotós lá de São Bento. Os Mocotós, parentes de minha avó materna, eram, segundo meu avô, os pricipais artistas na arte de mentir de toda Mantiqueira.

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Antes de sairmos acrescentei: “O senhor nunca mais vai me chamar de mentiroso”. Ao que ele rebateu: “Se for outra invencionice você vai voltar apanhando”. Fomos. Minha mãe foi também.

Seu Nakamura e Dona Mitiko nos receberam com alguma deferência e meu pai explicou o motivo da visita. “Fiquem à vontade. Dona Zuleika deve estar atrás do galpão das poedeiras. Podem ir até lá”, Foi o que disse Seu Nakamura. Dona Mitiko puxou assunto com minha mãe, mas esse teor não vem ao caso.

Chegando, o que vimos? Dona Zuleika com uma vara na mão tangendo dois jabutis: “Pra cima Coronel. Pra cima Nersinho”. Os dois jabutis, com aqueles passos lentos, mas precisos foram na direção uma velha mangueira de tronco largo e boas polegadas de diâmetro. Coronel (o maior) de uma lado e Nersinho do outro foram subindo na árvore. Instantes depois, como dois príncipes, estavam os dois lá em cima chupando manda-espada no maior contentamento. Como? Só Dona Zuleika saberia responder.

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“Tá vendo, pai?”. Ele nada disse. Nunca tocou comigo ou com mais alguém no assunto. Poucos meses antes que ele fosse falar com Deus, fui visitá-lo. Ele, já bem velhinho. Perguntei se tinha contado para alguém da família que o Coronel e o Nersinho eram capazes de subir em árvores. Ele sorriu e me disse: “De jeito nenhum, iam dizer que eu tinha sangue dos Mocotós lá de São Bento do Sapucaí”.

Foi o que realmente aconteceu.

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