ESBOÇO EM PEDRA E SONHO
Romance de Marília Arnaud
Ed. Faria e Silva/Grupo editorial: Alta Books, 2024
Escrever sobre o romance de Marília Arnaud depois do belo texto de João Batista de Brito é uma temeridade, pois ele disse tudo e da melhor forma. O que me faz ir adiante é o fato de saber que cada leitor possui um olhar singular baseado em suas referências, e pode interpretar por outro viés a história, como quem compõe um puzzle e quem sabe até ampliar um pouco mais o sentido do texto. Além disso, a riqueza polissêmica de um texto nunca é esgotada.
Li e reli Esboço em Pedra e Sonho, pois Marília lançou o romance no Rio de Janeiro, mas emprestei o livro e como não escrevi logo após a leitura, voltei a ele.
O título Esboço em Pedra e Sonho já tem embutido o tema da pintura. Nesse romance, Marília passeia pelas fases da pintura como um todo, figuração, impressionismo, expressionismo, abstracionismo. Faz referência aos grandes pintores, vai revelando sobre o fazer pictórico, colocando tudo nas falas dos personagens com suas reflexões sobre o ofício do pintor. João Batista de Brito em sua análise chegou a se perguntar se Marília também pintava. De fato, a autora faz uso do vocabulário especializado da pintura, menciona todas as cores da paleta e deixa impressões sobre as obras de alguns pintores, como quem domina essa arte.
Não sei se Marília também pinta, mas o que é evidente é o admirável trabalho de pesquisa: a precisão das palavras, não só relativas à pintura; há um extenso vocabulário característico da região, da cozinha, do estilo de vida, dos produtos tradicionais, e o mais importante, traz para a cena principal uma memória coletiva de graves acontecimentos políticos, sofrimento e injustiça relegada ao esquecimento. O leitor se depara com os dias sombrios da ditadura, o assassinato de Edson Luiz, os mitos populares como Frei Damião, a atmosfera opressiva daqueles anos. Impressiona o gigantesco trabalho de resgate da época: produtos que saíram de moda, revistas lidas pela classe média, hoje desaparecidas, Cruzeiro, Manchete, Burda. A descrição de ambientes e de funestos acontecimentos que marcaram o país, revelando a um só tempo, o passado ficcional da personagem e o passado histórico, de modo que o leitor que também viveu esses anos o situa e se une aos personagens com as suas próprias lembranças, podendo assim ampliar o panorama pintado por Ramona.
O fôlego para uma escrita de 214 páginas com tantos personagens e histórias que se cruzam, reconstituindo essa importante memória de um passado coletivo que jamais deveríamos esquecer, revela uma escritora lúcida, consciente e experiente, versada nos elementos estruturais do romance: o domínio da narração, fazendo uso de tempos narrativos nos quais os personagens, transitam do passado para o presente e vice-versa. E quanto à construção dos personagens? São todos de carne e osso, possuem vida própria: o avô Graciliano, Tomás, Simone, Tonho Mefisto, tia Anunciada, Carmela, a avó cigana, Nina, Teo, Concita; todos eles passam a fazer parte do imaginário do leitor. Ramona, a protagonista, é construída com maestria. É ela quem narra a história. O retorno à sua cidade Nossa Senhora das Pedras a faz rememorar seu passado, lugar onde começou a pintar, onde viveu seu primeiro amor com Teo, suas histórias de família, suas conflitantes amizades da adolescência. O leitor acompanha com deleite o eu reflexivo de Ramona. Seus monólogos interiores densos o fazem pensar, sofrer e sonhar. As falas sempre reflexivas convidam o leitor a embarcar em sua viagem do espírito:
“Penso no rumor incessante, no turbilhão de minha vida longe daqui; uma vida banal, como parece ser todas as vidas ao deixarmos de ser crianças.”
“A vida esse arrebatamento de ainda estar aqui, e essa agonia de tudo ser passado.”
“Há um mistério nas coisas, Simone; talvez conservam algo das pessoas que as possuíam.”
Agora pintora consagrada, depara-se com sua vida de outrora, observa lugares e revive situações. Mas o que ela mais quer é resgatar a obra de arte de Tonho Mefisto, e reencontrar sua amiga Concita. O encontro com Antônio, o filho de Tonho Mefisto, é conflituoso. Aqui, Ramona faz uma reflexão sobre a loucura associada ao artista e tenta explicar ao filho de Tonho “Onde há obra, não há loucura, são os estudiosos da mente humana que dizem, a pintura de seu pai não existiria sem a loucura”; e cita Van Gogh, Nietzsche, Hölderlin, “todos intratáveis, inconvivíveis.”O tema da loucura associada ao artista foi abordado recentemente pela jornalista Rosa Montero, do El País, em seu livro O perigo de estar lúcida. Nele, a autora relata trechos de vidas de muitos artistas e escritores com distúrbios mentais, ou instabilidade emocional já conhecidos do público, como Virginia Woolf, Sylvia Plath, Joyce, Camille Claudel, Fitzgerald, Hemingway e muitos outros, e onde ela própria se inclui:
“Acho que quase todos nós, romancistas, temos a intuição, a suspeita ou mesmo a certeza de que, se não escrevêssemos, ficaríamos loucos, ou nos desmantelaríamos, desmoronaríamos, a multidão que nos habita iria se tornar ingovernável.”
O autor francês Yannick Haenel, em O desejo como aventura, parece conversar sobre o amor pela arte com Marília e também refletir sobre a loucura:
“Não há necessidade de matar, a literatura realiza o desejo. O desejo conduz aos abraços que a poesia exige. E a poesia, a escrita, ao impedir o assassinato, abre-se à verdade da existência, ao segredo de sua existência. Sou um apaixonado pela pintura. Ela me atrai, me eletriza, me sacia. Seria necessário um romance inteiro para contar o que se produz entre ela e eu, a faísca que se acende entre uma obra e você responde a um desejo que você ainda não conhecia. Ela inventa esse desejo; e esse desejo lindo que uma obra de arte desperta em você é o fogo da existência. Quando você o encontra ele não se apaga mais: é como uma verdade secreta.”
No encontro de Ramona com Concita, ela se depara com a pergunta da amiga: “E aí Ramona a pintura tornou-a famosa?” Ela reflete sobre sua pintura tecida numa infância provinciana, sem estudos teóricos nem professores famosos. Mas sua pintura agradou aos críticos e um artista plástico comparou uma de suas telas com cavalos à pintura de Turner: Chuva, vapor e velocidade. Nesse encontro, fica sabendo da morte de Teo, da paixão da amiga por ele, o ciúme que a fez delatar para a polícia o avô de Ramona. O encontro revela a complexa trama da amizade, do primeiro amor, seus intrincados fios que unem e desunem.
O tema da pintura nesse romance, em que a personagem deambula pelas obras de pintores consagrados, aliado a uma escrita encantatória e segura, prende e fascina, tanto quanto o tratamento dado em O pássaro secreto e Liturgia do fim, outros dois romances que li da autora. Escrever para Marilia talvez seja também associar todas as artes, relacionando-as para refletir sobre o fazer de cada um desses ofícios, como uma amálgama do espírito, do ser sensível que pensa a arte como a busca da plenitude. Ou talvez como um recurso terapêutico da loucura de cada um de nós?