Interessante como algumas convenções muitas vezes definem a vida. Não quero falar, no momento, daquelas convenções que geralmente pioram a vida; falo das convenções do dia-a-dia: destes acordos tácitos que há centenas de anos vimos cumprindo e transformando em herança, a esta altura mais que cultural, atávica mesmo. No centro dessas convenções, está o perfil dos dias.
Em tese, concretamente, os dias são todos iguais: têm a mesma quantidade de horas, as mesmas divisões. Mas eis que estabelecemos o costume dos 5 dias de trabalho, e o sábado e o domingo viram dias diferentes, são dias sem expediente; o sábado é o dia da feijoada, da grande cachaça, o domingo é o da missa, do culto, etc... E há os feriados, que são diferentes, têm suas peculiaridades nacionais, alguns são festejados, outros, mais festejados ainda, porquanto universais.
Toda esta conversa furada porque hoje é Dia de Ano. Um dia como qualquer outro, mas que, por força da convenção, passamos a ver e a viver como um dia de lenço branco, com acenos de utopia coletiva. Comemoramos, brincamos, bebemos, dançamos (até sozinhos e sem notarmos), abraçamos (quase sempre maquinalmente), trocamos votos de felicidades (às vezes até com pessoas com quem gostaríamos mesmo era de trocar votos de infelicidade). Naturalmente, em parte, isto ocorre porque, na nossa solidão anímica e no nosso desespero de fisicamente sós, temos um impulso, às vezes até físico, na direção do outro. Mas isto também ocorre porque há uma convenção que nos diz: este é o dia da confraternização universal; este é o dia em que você deve desarmar o coração e o coldre; este é o dia em que você deve perceber que o outro também existe – e embora existindo também sozinho, ele terá sua solidão diminuída se você o percebe, e (milagre!) você se sentirá menos só ao perceber que o outro existe – ao fazer um movimento em direção ao outro.
No Dia-de-Ano, então, somos convidados e/ou estamos liberados (muitos se sentem intimados) para ensaiar (mesmo que por um fragmento infinitesimal de tempo) uma frágil e abstrata ciranda universal, ainda que verdadeira com alguns poucos, encenada com a maioria.
Mas a vida em geral realiza, no seu-dia-a-dia de dias comuns, um exercício de tanto esquecimento do outro, de tanta negação do outro, de tanta violência contra o outro, de tanto desrespeito ao outro, de tanta tentativa de eliminação do outro, que eu chego a desejar que rapidamente se convencione que todos os dias são de confraternização universal, para ver se, ao menos artificialmente, num gesto de encenação universal, reconhecemos a existência do outro todos os dias, legitimamos a existência do outro todos os dias, reduzimos o grau de violência contra o outro e contra nós mesmos todos os dias.