Os gramáticos falam em 1ª, 2ª, 3ª pessoas, para os pronomes pessoais eu, tu, ele, respectivamente. De preferência, deveriam falar em pronome elocutivo (o falante), alocutivo (o interlocutor) e delocutivo (a pessoa de quem se fala). Não se trata apenas de nomenclatura, mas de clareza de sentido. Um pronome elocutivo pode ser equivalente a ele/ela; ou pode designar tu ou você; um pronome alocutivo pode equivaler a ele/ela ou eu. O pronome nós, originalmente elocutivo, pode ser pronome de tratamento equivalente a você (excluindo o falante). É o que vamos tentar mostrar neste artigo.
A divisão tripartite – eu (emotivo), tu/você (conativo ou social) e ele (referencial) – leva às três funções básicas da linguagem propostas pelo linguista alemão Karl Bühler: função expressiva ou emotiva (centrada no eu), função de chamamento ou conativa (centrada no tu/você) e função representativa (centrada no ele). Mais tarde, Jackobson acrescentou a essas três funções da linguagem as funções metalinguística, fática e poética, além do subtipo a que ele chamou de “função mágica” da linguagem.
Essa divisão tripartida também explica os modos verbais: modo subjuntivo (função emotiva), modo imperativo (função conativa) e modo indicativo (função referencial).
Ocorre que eu nem sempre designa o emissor; tu/você nem sempre designa o receptor; e ele nem sempre designa a não pessoa.
Vejamos exemplo de um pronome ele/ela equivalente a eu. Num requerimento, o falante se trata a si mesmo como ele: “Fulano de Tal vem respeitosamente requerer de V. Exa. se digne conceder-lhe...” Ao ouvir tocar insistentemente a campainha da porta, o dono da casa poderá dizer “Já vai, já vai”, em vez de “já vou”. Ao telefone, poderá responder à pergunta “Falo com Fulano?” dizendo: “É ele”, em vez de “sou eu”. Também alguém poderá responder à pergunta “Como vai você?”, usando um pronome delocutivo: “Vive-se, trabalha-se...”
Numa canção (Teresinha) diz Chico Buarque (cito de memória): “Mal sei como ele se chama, / mas entendo o que ele quer,/se deitou na minha cama/e me chama de mulher.” Obviamente, esse eu/me/minha não se refere ao autor. É um eu delocutivo, como nos romances ficcionais narrados em 1ª pessoa. Esse eu é a pessoa de quem se fala e não a pessoa que fala.
Nos pronomes de tratamento elocutivos (de 1ª pessoa), o falante se refere a si mesmo na 3ª pessoa: “O papai aqui não leva desaforo pra casa.” “Meu coração detesta violência.”
Vejamos um exemplo em que você é elocutivo, designa o falante e não o ouvinte, isto é, não é pronome alocutivo.
Na peça Os pais abstratos, de Pedro Bloch, há o seguinte diálogo entre um homem e sua amante:
DANILO; Eu não sou dono de mim, Denise.
DENISE: Até há pouco era.
DANILO: Parece fácil... Na hora... você chega em casa e entra logo em clima de criada nova, tintureiro, que manchou o terno azul, strogonoff, fogão dando defeito... De repente, você está até arriscado a descobrir que tem um filho que faz poemas... entende? Keats, Castro Alves, Rimbaud.
As duas ocorrências de você não se referem a Denise, mas ao próprio Danilo, e representam, em parte, uma tentativa de generalização do seu próprio caso particular. Observe-se que arriscado, referindo-se a você, não está no feminino, como seria de supor, em se tratando de uma ouvinte do sexo feminino. Você assume nesse exemplo as três pessoas gramaticais: é o ele genérico; é o eu que narra a própria experiência; e é o tu, também genérico, com quem esse eu pretende partilhar sua própria sorte.DENISE: Até há pouco era.
DANILO: Parece fácil... Na hora... você chega em casa e entra logo em clima de criada nova, tintureiro, que manchou o terno azul, strogonoff, fogão dando defeito... De repente, você está até arriscado a descobrir que tem um filho que faz poemas... entende? Keats, Castro Alves, Rimbaud.
BLOCH, Pedro. Os pais abstratos. Petrópolis: Vozes, 1965, p. 43
O tu elocutivo é um desdobramento de personalidade, uma espécie de pronome de tratamento de 1ª pessoa. Leite de Vasconcelos, em suas Lições de filologia portuguesa (Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1959, p. 167, § 46), apresenta o exemplo de um alentejano de nome Pedro, que costumava falar com seus botões: “Ó Pedro, tu és moço, boa figura, e tens com que viver; por que não há-des encontrar uma boa rapariga que case contigo?”
Vejamos um exemplo em que o pronome nós é um pronome de tratamento de 2ª pessoa, que exclui o falante, isto é, nós é apenas alocutivo, um plural de solidariedade. A mãe diz ao filho: “Vamos tomar a sopa?” (O filho é que vai tomar a sopa.) Um médico chega ao hospital e pergunta ao paciente acamado: “Como estamos hoje? Como passamos a noite?” (Esse nós exclui o falante e é apenas alocutivo. Significa: você.)
O vós de cerimônia ou de reverência teve sua origem condicionada ao nós de majestade. Era difícil não usar o plural para alguém que se tratava a si mesma como nós. O vós de reverência, isto é, com significação singular, é usado nas orações católicas, em poesia popular e folclórica, de respeito à tradição: “Dizei, Senhora Viúva, / Com quem quereis se casar, / Se é com o filho do conde...”
Ele pode ser um pronome alocutivo (pronome de tratamento de 2ª pessoa). Em Avelanoso, Maria José de Moura Santos, em “Os falares fronteiriços de Trás-os-Montes” (Separata da Revista Portuguesa de Filologia, Coimbra, vols. XII, tomo II, 1967, p.21) registrou, entre outros, este exemplo:
“⏤ Num vais a buscar a lenha?
⏤ Por que num bai ele?” (= `Por que não vais tu?)
⏤ Por que num bai ele?” (= `Por que não vais tu?)
O alemão Sie (Elas) e o italiano Lei (Ela), são formas alocutivas de tratamento de respeito. Em alemão, contudo, Sie, forma de respeito, se usa sempre no plural.
Na carta de Caminha, o rei é respeitosamente tratado por ela, em referência à alteza do rei:
“E pois que Senhor he certo que asy neste careguo que leuo como em qualquer outra coissa que de vosso serviço for uosa alteza há de ser de mym mujto bem seruida, aela peço que por me fazer simgular merçee mãde viyr dajlha de sam thommee jorge dosoiro meu jenrro, o que dela rreceberei em muyta mercee.”
PRADO, J.F. de Almedia, ed. – Carta de Pero Vaz de Caminha. 2.ed. Rio de Janeiro: Agir (col. Nossos Clássicos), 1977, p.110
Não sei se o genro de Caminha foi mandado vir da ilha de São Tomé, mas, por esse exemplo, já se vê que o nepotismo havia no Brasil antes de haver o Brasil...