Lipograma é um texto a que falta uma letra por decisão do autor. Lope de Vega, dramaturgo espanhol (1562-1635), escreveu cinco cont...

Conto sem verbo

conto casal verbo linguistica
Lipograma é um texto a que falta uma letra por decisão do autor. Lope de Vega, dramaturgo espanhol (1562-1635), escreveu cinco contos em cada um dos quais falta uma vogal específica. Mais difícil foi o trabalho do escritor francês Georges Perec (1936-1982), que publicou em 1969 um romance lipogramático a que falta a vogal e: La Disparition. O próprio título é um desafio, embora fácil de resolver: em lugar de “O desaparecimento”, poder-se-ia dizer “O sumiço”.
A vogal e é a de maior frequência na língua francesa. Imagine-se o trabalho do escritor para evitar todas as palavras que contêm essa vogal. Eis a regra enunciada e seguida pelo próprio autor:

“Il faut, sinon il suffit, qu’il n’y ait pas un mot qui soit fortuit, qui soit dû au pur hasard, au train-train, au soi-disant naïf, au radotant, mais qu’a contrario tout mot soit produit sous la sanction d’un tamis contraignant, sous la sommation d’un canon absolu!”

Em tradução aproximada, desrespeitando o trabalho lipogramático do autor:

“É preciso, senão suficiente, que não haja uma palavra que seja fortuita, que seja devida ao puro acaso, à repetição monótona, ao pretenso ingênuo, à tagarelice, mas que, ao contrário, toda palavra seja produzida sob a sanção de um crivo constritivo, sob a imposição de um modelo absoluto!”
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Procurei nos meus dicionários analógicos qual seria o termo adequado para um texto a que faltasse o verbo. Não encontrei, certamente por incompetência minha ou por inexistência da palavra pretendida. Pensei em utilizar a expressão “lipoverbalismo”, ou “antipsitacismo” ou “lipoverbografia”, palavras inexistentes nos dicionários e, por isso, descartáveis. Não tenho vocação para o neologismo. Eis o conto a que dei o nome de
MELODRAMA
Ontem, num passado recente e maravilhoso, a promessa de um futuro feliz: um encontro na praça, os cumprimentos de praxe, mãos dadas, a compreensão de um sentimento profundo. Depois os beijos, os abraços, os carinhos mútuos, o escurinho do cinema, o desprezo pelo filme.

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Hoje, num bilhete de despedida, numa letra bonita e redonda, o fim de um namoro, para ambos; não do amor, para ele. O choro, a dor, a saudade, a lembrança dos bons momentos...

Agora, um bar. Um garçon solícito de pé, à espera do pedido. Um gesto do rapaz em direção à garrafa vazia. O polegar da mão direita do garçon, erguido. O rapaz cabisbaixo, na tentativa de um sorriso demonstrativo do entendimento desse gesto do garçon.

A chegada do garçon de retorno à mesa, com a garrafa cheia. A bebida de volta e a volta à bebida. Saudade premente, sufocante, sem o alívio do copo já vazio e novamente cheio. E as perguntas silenciosas: por que eu? Por que ela? Por que essa despedida súbita, sem retorno, essa separação definitiva, estranguladora? Uma viagem sem volta, uma viagem para todo o sempre...

Mãos na cabeça, cabisbaixo, o copo novamente vazio. Tristezas numa saudade sem fim e sem cura. Inutilidade da bebida, insuficiente para o
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alívio das lembranças doces, revividas numa saudade sofrida. O revólver no bolso, sentido ao toque da mão trêmula. A morte sim, preferível à cerveja. Ponto final da página de amor, rasgada no último parágrafo.

Um tiro só. E pronto... O fim do drama.

Quase o fim. A moça, de volta de improviso, de pé, à porta do bar, estarrecida diante da cena. Sem o sentimento de culpa, embora culpada... Um mal-entendido, um equívoco, uma despedida forjada provocadora de um ciúme doentio... Agora, as lágrimas tardias dela pelo destino trágico, pelo desfecho inesperado e inconcebível... E um corpo diante da mesa cheia de garrafas vazias de cerveja...

Coisas do amor. Coisas da vida. Coisas da morte...
LIVROS DE CONTOS DO AUTOR: JOSÉ AUGUSTO CARVALHO
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