Como eu gostava das conversas daqueles três. Pareciam dominar à perfeição temas que dissessem respeito à ciência, à tecnologia, ou à história. Os assuntos mudavam continuamente e, de uma hora para outra, podiam pular dos olhos azuis da dona Amélia, com todo respeito, à energia escura, essa coisa da qual são feitos 95% do universo observável com os recursos tecnológicos modernos. Sim, modernos mesmo, posto que me refiro aos hoje existentes e não apenas aos do tempo dos meus 14 anos, quando eu me fazia ouvinte cativo daquele trio.
Os 5% restantes – agora sei bem disso – compõem-se de coisas sólidas e gasosas: nuvens galácticas, estrelas, planetas e que tais.
Olhos azuis e energia escura, dois fenômenos palpitantes. O primeiro, dizia respeito à existência da minha avó materna, produto da invasão holandesa, como assim entendia o juiz de direito. Eu adorava essa possível ancestralidade por mais que o Fonseca Chagas, sobrenomes da dona Amélia e de seu marido, desmentissem o sangue batavo. Outro aconchego, enquanto isso, nunca me permitiria dispensar os afagos da dona Sole, a mãe do meu pai, com seus olhos negros e sua pele morena.
“Cultura de almanaque”, dizia o velho coletor sobre os conhecimentos expressos pelos três amigos quando dos seus encontros, ao entardecer dos sábados, em frente da Padaria de Seu Juca, meu pai, e em tamboretes por este tão dispostos na calçada quanto os pães e o café pilado pelas mãos santas de Maria, ajudante da minha mãe nos tratos da cozinha.
O grupo do coletor era outro e ali também se reunia, um dia antes, para discussões menos científicas, menos edificantes e sem bom proveito. Eu não tinha dúvida, portanto, de que o deboche do moço continha um quê de despeito. Às sextas-feiras, o bate-papo poderia abordar o futebol, as filhas namoradeiras (sempre as dos outros) ou a pescaria. Quando a conversa se relacionava a calotes, à arenga entre vizinhos, a algum escândalo prestes a explodir, ou vinha com piadas mais pesadas, eu, atentíssimo, era expulso do recinto por Seu Juca e odiava isso. Logo quando a coisa estava ficando boa?
Cultura de almanaque, ou não, eu me deliciava com aquelas dissertações acerca de dobras espaciais, da paralisação do tempo para quem viaje à velocidade da luz, da possibilidade de universos paralelos, essas coisas intuídas por Einstein e seus iguais. O professor de matemática era bom nisso. O Sputinik, satélite russo que então já percorria o céu em zigue-zague, aguçava o interesse em geral por tais assuntos.
O padre era capaz de declamar de cor datas e fatos importantes atinentes à evolução da humanidade. E o médico me fez querer alguns males e seus remédios pela beleza dos títulos. Quem não gostaria de desfrutar de uma Síndrome de Alice no País das Maravilhas, de uma Síndrome de Paris, ou de um Delírio de Capgras? São nomes para romances. Gostei do termo “azia” até saber que significava queimadeira. Tomei Sal de Frutas Eno, então, mesmo sem sofrer disso. Alka Seltzer... há coisa mais chic?
Lubango já me pareceu nome de jogador de futebol com origem africana. Eu o escalaria para meu time se não fosse avisado de que isso diz respeito à espinhela caída. Esofagite poderia, sem favor nenhum, ser o nome de uma deusa egípcia. Influenza não caberia muito bem no registro de nascimento de uma bailarina espanhola?
Não vi o Lunário Perpétuo, o almanaque cuja leitura teria aprimorado o nível cultural do juiz, do padre e do professor de matemática, de cujas idades o coletor também zombava. Essa publicação, ao que li, teve origem em Valência, no ano de 1594, por obra e graça de Jerónimo Cortés. Talvez meu trio preferido tenha visto algumas de suas reedições, posto que atravessaram séculos.
Suas páginas ofereciam conselhos, horóscopos, previsões do tempo, informes para navegação, agricultura, astronomia, cuidados com a saúde, bulas papais, biografias de santos, noções de direito e teologia. Tornou-se popular no Brasil, especialmente, na sua zona seca e desamparada, a ponto de Câmara Cascudo ter um exemplar na mesa de cabeceira. E ao ponto, ainda, de dar título ao primoroso espetáculo de danças, enredos, cantos e casos protagonizados pelo incrível Antonio Nóbrega, músico de escol, professor universitário e uma das mais fortes expressões da cultura popular nordestina. Ariano o adorava.
Vi outro almanaque, neste último caso, para ler a história de Jeca Tatuzinho criada por Monteiro Lobato para ajudar o amigo Fontoura na venda do seu biotônico. Minha avó paterna tinha isso na mesinha de centro da sala de visitas. Vi algumas Estampas Eucalol, embora não as tenha colecionado.
E confesso que isso tudo agora me vem à mente com as saudades que tenho da calçada onde sentaram, habitualmente, meu pai e seus amigos. Não menos, com o pesar decorrente do fato de que as calçadas, hoje em dia, são espaços proibidos à confraternização das famílias pela violência e pela insegurança, mesmo nas cidades pequenas a exemplo daquela onde eu e meus irmãos crescemos.
E suplico aos jovens para os quais a vida reserva, em espaço fechado, a conversa no computador, ou celular, os jogos eletrônicos e as brinquedotecas dos shopping centers. Sim, acreditem, houve mesmo o tempo das cadeiras nas calçadas e de meninos interessados nas conversas dos adultos.