Fechando o ano de 2024, a Editora Record deu a público A Intensa Palavra, coletânea de crônicas de Carlos Drummond de Andrade, publicadas no jornal carioca Correio da Manhã, no período de 1954 a 1969. A compilação foi organizada pelo escritor paranaense Luís Henrique Pellanda, que também assina o prefácio. Não preciso dizer que, como tudo do itabirano,
o livro é uma preciosidade. E comprova a inesgotabilidade do poeta-cronista, ainda surpreendendo o leitor com novidades como essa.
1954-1969. 15 anos. Como se vê, um período rico de acontecimentos na vida nacional. Vai-se do suicídio de Getúlio Vargas ao AI-5. Passando por Juscelino, Jânio e João Goulart, sem falar nos protagonistas militares e civis do golpe de março/abril de 1964. Assunto para o “observador de escritório” é que não faltou. E ele não fugiu ao dever de registrar e comentar o que ia pela cidade e pelo país, não com paixão partidária ou ideológica, mas com a isenção possível do bom cronista e a serenidade do sábio que já não se surpreende com nada, de tanto que viu e viveu nas estradas da vida.
Eis o equilíbrio de quem enxerga os diversos ângulos do acontecimento, a imparcialidade possível que se espera de um analista da sociedade, de alguém que procura se colocar equidistante das paixões dos contemporâneos enlouquecidos.O cronista Drummond tinha esta característica que o recomenda: nunca era panfletário, nunca descia ao rés do chão da politicagem mais rasteira; permanecia sempre altaneiro, sem que isso significasse arrogância nem indiferença. Ele participava, sim, da vida de seu povo, mas ao seu modo, sempre fiel à reserva de seu temperamento, assistindo a tudo de seu canto sombreado, o mesmo do “anjo” que o mandou, ao nascer, ser gauche na vida; nunca comparecendo pessoalmente ao campo de batalha, às passeatas, aos comícios, aos confrontos diretos, e, todavia, sempre presente com a sua palavra, a intensa palavra em verso e em prosa do brasileiro que, atravessando todo o século XX, não se omitiu nem se acovardou. Foi comunista (por pouco tempo, é verdade) e chefe de gabinete do ministro Capanema em plena ditadura Vargas, posições aparentemente inconciliáveis, mas foi sobretudo ele mesmo, o doce e comprometido homem de “cabeça baixa”, de “ferro” – e ao mesmo tempo tão lírico.
Vejamos a crônica “Tragédia Política”, que publicou no dia seguinte ao suicídio de Getúlio, no calor das emoções desenfreadas, quando o imenso morto, transformado pelo martírio em herói, jazia ainda insepulto, arrastando multidões no Rio, no maior enterro da história do Brasil. O primeiro parágrafo já dá o tom do texto, mostrando como aquela morte repentina mudava tudo no país convulsionado: “O respeito aos mortos não é só uma lei cristã: está no fundo da natureza humana, e se confunde com o respeito próprio. Súbito, a pessoa do presidente deixou de interessar ao debate político. As queixas contra ele desaparecem, e a paixão se cala, como vazia de seu objeto. Luta-se contra um vivo, porém os mortos adquirem logo uma invulnerabilidade que torna inútil qualquer censura, se o próprio sentimento da morte já não a tornasse odiosa.”. Eis a sensibilidade do observador distinguindo o morto do vivo, e exigindo respeito àquele que saíra da vida para entrar na história, acima e além das controvérsias. Sobre a trágica e voluntária extinção física do presidente, Drummond é taxativo, ao final da crônica: “Em seu desespero, ela nos comove, e, compungidos e respeitosos, nos inclinamos ante este final de destino.”.
Entretanto, simultaneamente, o cronista defende alguns dos que, de boa-fé, estavam contra Vargas na hora derradeira. Sim, porque ele reconhece a legitimidade da oposição ao presidente, reconhecendo-a, quando leal, como inerente ao jogo político da democracia. Daí nem todos os adversários do morto merecerem a execração pública de que foram alvo naqueles instantes de comoção: “Entre os que, de consciência limpa, divergiam do presidente, estavam muitos dos melhores e mais puros homens do país, e não mereciam ser tratados como inimigos do povo.”. Eis o equilíbrio de quem enxerga os diversos ângulos do acontecimento, a imparcialidade possível que se espera de um analista da sociedade, de alguém que, por dever de ofício, procura se colocar equidistante das paixões dos contemporâneos enlouquecidos. Ouso supor que dentre aqueles “homens puros” contrários a Vargas certamente estavam Afonso Arinos de Melo Franco e Milton Campos, dois liberais mineiros, da mais nobre estirpe política brasileira.
Agora, pulemos para a crônica “Hora de provar”, publicada em 4 de abril de 1964, ainda no calor da deposição de João Goulart pelos militares. Novamente se vê a prudência do exegeta, o cuidado em ser clarividente sem ser injusto: “É com tristeza misturada a horror que, ao longo da vida, tenho presenciado generais depondo presidentes, por piores que estes fossem. Será que jamais aprenderemos a existir politicamente? Não haverá jeito para o Brasil? Mas no caso do sr. Goulart a verdade é que ele pediu, reclamou, impôs sua própria deposição. Que fazer quando o servidor-presidente se torna inimigo maior da tranquilidade? Esperar que ele liquide com a ordem legal, para depois processá-lo segundo os ritos, julgando-o pelo Supremo Tribunal ou pelo Senado? Que Senado, que Tribunal existiriam a essa altura?”. Palavras intensas e lúcidas do cidadão Drummond, a falar por muitos de seus concidadãos. A propósito, certa vez, num pronunciamento que fiz a convite do historiador José Octávio de Arruda Mello, repeti, com outras palavras, o mesmo que disse o poeta nessa crônica histórica, a qual, à época, não conhecia. Achei que estava apenas dizendo o óbvio, depois de tantos anos passados desde aquele funesto março/abril de 1964. Pois um senhor de cabelos brancos que estava bem próximo de mim cochichou com seu vizinho – e eu ouvi: “É um reacionário.”, Vejam só. Podia ter ido dormir sem essa. Nada respondi na hora, em respeito ao lugar e ao momento. Mas em seguida mandei um recado ao ancião por um amigo comum: “Diga a ele que reacionário é a vovozinha!”.
Pois pois, como dizem os portugueses. Quanto mais leio, mais gosto do itabirano. Ele fala e escreve por mim – e por tantos. É meu intérprete, meu psicanalista, meu semelhante. O que mais posso querer de um escritor?