“Eles bebiam todas as segundas e sextas-feiras à noite, colocando-o num grande recipiente feito de barro vermelho. O seu líder despejava-o com uma pequena concha e dava-lhes a beber, passando-o para a direita, enquanto recitavam as suas fórmulas usuais.”
Essa narrativa encontra-se numa crónica da autoria de Abd-al-Qadir ibn Muhammed al-Ansari al-Jaziri al-Hanbali, sobre a história do café, Umdat al-Safwa fi hill al-qahwa, na sua edição de 1826.
Não há uma evidência real sobre a descoberta do café, mas algumas lendas relatam uma sua possível origem.
No coração das montanhas da Etiópia, num local chamado Kaffa, muitos séculos atrás, lá pelo século IX, por volta de 850 d.C., uma curiosa descoberta mudaria para sempre o curso da história humana. E tudo terá começado com um pastor abissínio chamado Kaldi, cujo rebanho de cabras vagueava pelas encostas verdejantes da região. Um dia, enquanto observava as suas cabras pastando, Kaldi notou algo peculiar: estas ficavam visivelmente mais animadas e cheias de energia após comerem umas determinadas frutinhas vermelhas de um arbusto desconhecido.
Intrigado, Kaldi decidiu experimentar ele mesmo aqueles bagos. Para sua surpresa, também ele começou a sentir um aumento de energia e vitalidade. Encantado com a sua descoberta, Kaldi compartilhou a experiência com um monge sufi local, que decidiu investigar mais a fundo.
O monge, curioso e perspicaz, resolveu secar e moer os grânulos, criando uma mistura que ele depois fervia em água. O aroma sedutor que emanava da mistura era irresistível. Após experimentar a bebida resultante, o monge percebeu que ela tinha propriedades estimulantes e revigorantes. Era como se a própria essência da vitalidade estivesse contida naqueles pequenos grãos.
Logo os monges da região começaram a preparar e a consumir regularmente essa bebida, que os ajudava a manter a concentração durante as longas sessões de meditação e de oração noturna. Rapidamente a notícia sobre os efeitos dessa bebida mágica espalhou-se para além das montanhas e planícies da Etiópia, viajando para terras distantes e exóticas.
Com o tempo, o cultivo e comércio do café expandiram-se para outras partes do mundo, onde se tornou um elemento essencial da cultura e da sociedade. O manuscrito de Al-Hanbali narra a disseminação do café (Qah’wah) pelo Iémen, através dos mercadores que cruzavam o Mar Vermelho e jornadeavam por Meca e Medina, e depois seguiam para Damasco, Baghdad e Constantinopla (onde se supõe tenha sido inaugurada a primeira casa popular do mundo de consumo social de café, conhecido como kahve, em 1475), os entrepostos comerciais mais importantes do Médio Oriente naquela na época. De lá, seguiu o seu caminho até chegar à Europa e a todo o mundo.
Por volta de 1500, foram abertas várias cafetarias por todo a Pérsia, Egito, Síria e em Istambul (Turquia), disseminando ainda mais a bebida e a sua cultura. Curiosamente, ainda hoje a maior rede de café da Etiópia é chamada Kaldi’s. Transportado em caravanas de camelo até aos portos turcos de onde saía em barcos para todo o mediterrâneo, o café foi introduzido na Europa em 1615 a partir de Veneza e Marselha, principais portos mercantis do mediterrâneo.
O grande entusiasmo por esta bebida, aliado aos elevados preços praticados pelos árabes, originou uma intensificação dos esforços para obter grãos férteis ou uma planta viva que pudesse ser cultivada. Isto foi finalmente conseguido, segundo se conta, por um peregrino hindu, Baba Budan, que conseguiu levar 7 sementes até à Índia.
Esta estória da descoberta de Kaldi pode ou não ser fictícia. Certo é que foi originalmente contada por Antoine Faustus Nairon, um maronita que se tornou professor romano de línguas orientais, autor da obra De Saluberrima potione Cahue seu Cafe nuncupata Discurscus, um dos primeiros tratados impressos sobre café (Roma, 1671), sugerindo a sua provável natureza apócrifa.
E foi assim que, diz a lenda, uma simples descoberta de um pastor das ressecadas montanhas etíopes deu origem a uma das bebidas mais apreciadas e consumidas em todo o mundo: o café. Um pequeno pomo vermelho que mudaria o mundo para sempre, deixando um legado que perdura até aos dias de hoje. Que, desde então, tornar-se-ia muito mais do que apenas uma bebida estimulante, sendo actualmente um símbolo de convívio, cultura e intercâmbio global.