Na Odisseia, Homero nos relata a ida de Odisseu ao Hades, para cumprir a missão de escutar Tirésias, o cego profeta de Apolo, e assim saber como orientar a sua viagem para o cumprimento do seu destino: a chegada a Ítaca e a retomada da situação, impondo a ordem na sua casa e a paz no seu reino, tomado pela sanha dos soberbos pretendentes à mão de sua esposa Penélope. O episódio relatado no Canto XI da Odisseia, conhecido como νέκυια,
o sacrifício para a evocação dos mortos, não supõe uma descida completa, a catábasis (κατάβασις), pois Odisseus fica apenas na entrada do Hades, de onde chama as almas, especialmente a de Tirésias, vendo a profunda escuridão do Érebo, para onde vão os que morreram. Terminada a sua missão, ele embarca imediatamente na sua nau, afastando-se dali.
Situação semelhante se dá na Eneida, poema épico de Virgílio, cujo herói, Eneias, desce aos Infernos, fazendo a catábasis completa, para se entrevistar com o seu pai, Anquises, e, assim, saber o destino da grande Roma, cidade que nascerá da sua chegada ao Lácio, fugido de Troia. Nos dois casos, a ida ao Hades ou aos Infernos, trata-se de uma determinação dos deuses, tendo os dois heróis, Ulisses e Eneias, que cumprir, portanto, uma obrigação.
O que dizer de uma narrativa cujo personagem principal, em lugar de descer, sobe a um inferno metafórico, não por obrigação, mas por vontade própria, para uma visita de cortesia e amizade a um parente? É isto o que ocorre em A montanha mágica (tradução de Herbert Caro, Nova Fronteira, 2006), de Thomas Mann. Hans Castorp sobe uma montanha na Suíça, para visitar seu primo Joachim Ziemssem, que se encontra na condição de interno do Sanatório Internacional de Berghof, mais parecido com um hotel do que propriamente com um hospital para tuberculosos. A subida de Hans Castorp, como visitante, o faz descer à condição de interno, que vai se deixando ficar e, sem perceber, transforma-se numa alma desgarrada do sentido da vida anterior, da vida lá de baixo, como eram, comumente, tratados os que viviam na planície.
Essa viagem a um inferno às avessas, ao qual é preciso subir e não descer, proporciona ao leitor o prazer de se defrontar com a odisseia particular de Hans Castorp, em que não há heroísmo, nem narrativas fantásticas, mas uma profunda viagem de retorno a si mesmo, reavaliando a vida e realizando um novo aprendizado, a partir de toda uma reformulação do conceito de tempo, em um lugar em que a menor medida temporal é um mês.
Dizer que a viagem introspectiva de Hans Castorp é uma odisseia não é mera retórica. O romance de Thomas Mann é perpassado de referências mitológicas, sobretudo com relação à Odisseia de Homero. Senão, vejamos:
Lodovico Settembrini, um dos internos, de quem falaremos adiante, humanista declarado, trata Prometeu como o primeiro dos humanistas, conceituando humanismo, como o amor aos homens, retomando, assim, por perífrase, o epíteto dado a Prometeu por Ésquilo, filantropos (Quarto capítulo, p. 216). Behrens, diretor do sanatório, também de quem falaremos adiante, trata os primos Hans Castorp e Joachim Ziemssem, como os Dióscuros, Castorp (trocadilho com Castor) e Pólux (Quinto capítulo, p. 291).
Dirigindo-se a Hans Castorp, para que este não se deixe envolver pela atmosfera do Sanatório, a ponto de esquecer-se do mundo da planície e passar a enfrentar a existência como se fosse uma sombra, sem ter a noção do tempo, Lodovico Settembrini o adverte, retomando a Odisseia (Canto IX), no episódio da transformação dos companheiros de Ulisses em porcos:
Vele pela sua dignidade! Seja orgulhoso e não se perca no ambiente estranho! Evite este atoleiro, esta ilha de Circe. O senhor não é bastante Ulisses para habitá-la impunemente. Acabará andando de quatro patas. Já está a ponto de se apoiar nas extremidades dianteiras. Daqui a pouco começará a grunhir. Cuidado!
Em outra ocasião, sabendo ou desconfiando do que acontecera entre Castorp e Clawdia Chauchat, na noite de terça-feira de carnaval, Settembrini pergunta ao personagem, numa referência invertida ao rapto de Perséfone por Hades:Quinto capítulo, p. 333
⏤ Pois então, engenheiro, gostou da romã?
⏤ Como?... Que é que o senhor quer dizer, sr. Settembrini? Uma romã? Mas não nos serviram romãs! Nunca na vida comi... Isto é, um dia, sim, bebi xarope de romã com água de soda. Achei muito doce.
O italiano, que já se achava a alguma distância, virou a cabeça e retrucou:
⏤ Aconteceu algumas vezes que os deuses ou os mortais visitaram o reino das sombras e encontraram o caminho de volta. Mas os habitantes do inferno sabem que quem comeu dos frutos desse reino lhes pertence para sempre.
O engenheiro tenta desconversar, mas se sente feliz com a alusão feita ao amor havido entre ele e madame Chauchat, um “Hades” aprisionado por uma “Perséfone”.⏤ Como?... Que é que o senhor quer dizer, sr. Settembrini? Uma romã? Mas não nos serviram romãs! Nunca na vida comi... Isto é, um dia, sim, bebi xarope de romã com água de soda. Achei muito doce.
O italiano, que já se achava a alguma distância, virou a cabeça e retrucou:
⏤ Aconteceu algumas vezes que os deuses ou os mortais visitaram o reino das sombras e encontraram o caminho de volta. Mas os habitantes do inferno sabem que quem comeu dos frutos desse reino lhes pertence para sempre.
Sexto capítulo, p. 475
Acreditamos que, além de observar a transformação do mito grego na pena de Thomas Mann, é importante ver como nessa recriação a ironia se introduz como um elemento estrutural do romance, de modo que não a perceberemos se não conhecermos o mito ali referido.
A ironia, sempre muito utilizada nos diálogos platônicos, é um termo grego (εἰρωνεία), significando “ação de interrogar fingindo ignorância”. A palavra é proveniente do verbo médio εἰρωνεύομαι, com o sentido de “fingir o ignorante, o crédulo, dissimular, fingir, falar com um fingimento zombeteiro”, estando ligada a εἰρων, cujo sentido é “que diz menos do que pensa”, daí “dissimulação reticente”. O vocábulo, ainda que não tenha uma etimologia satisfatória, conforme assegura Chantraine, no seu Dictionnaire étymologique de la langue Grecque, encontra-se no campo semântico de dizer, que, em grego, também se realiza através do verbo εἲρω. É este aspecto mordaz e dissimulado da ironia que nos chama a atenção, numa passagem do romance A montanha mágica. Contextualizemos, para, em seguida, transcrevermos a passagem.
No sanatório, a senhora Stöhr, uma das internas bastante doente, é tratada de modo caricatural, por ser inculta. Ela troca, por exemplo, agônia por agonia, insolvente por insolente (Quinto capítulo, p. 400), magnete por magnata (Sétimo capítulo, p. 738) e chama a Eroica, de Beethoven, de erótica (Sexto capítulo, p. 718)... Carolina Stöhr torna-se, assim, objeto de gozação por parte do italiano Lodovico Settembrini, de espírito mordaz e culto, que se definia como “reduzido a escarnecer a vida e a condição do pessoal do Sanatório Internacional de Berghof, a castigá-las com críticas zombeteiras e protestar contra elas em nome de uma humanidade bela e cheia de atividade” (Quarto capítulo, p. 209).
No horário das refeições do Sanatório, Lodovico Settembrini, deixando de lado o regulamento, costumava parar na mesa dos primos Joachim Ziemssen e Hans Castorp, e conversar um pouco com eles e com os outros convivas, com a sua costumeira mordacidade. Em uma dessas ocasiões, perguntando pela saúde da senhora Stöhr, recebe a seguinte resposta afetada e, imediatamente, retruca (Quarto capítulo, p. 206):
⏤ Ah, meu Deus! – disse ela. — É sempre a mesma coisa; o senhor sabe muito bem. Damos dois passos para a frente e três para trás. Cada vez que a gente acaba de cumprir cinco meses da pena, vem o velho acrescentar mais meio ano. Ai de mim, são verdadeiros suplícios de Tântalo! Vai-se empurrando, empurrando, e quando se pensa que a pedra está em cima...
⏤ Ah, como a senhora é gentil! Concede a esse coitado do Tântalo uma pequena mudança de ocupação. Para variar, deixa-o rolar o famoso bloco de mármore. É o que se pode chamar de genuína bondade da alma...
Observa-se na fala da senhora Stöhr a existência de dois mitos, o de Tântalo, expresso de modo explícito, e o de Sísifo, implícito, ambos, na concepção da personagem, entendidos como um único e mesmo mito. Ao misturar os dois mitos, colocando Tântalo empurrando uma pedra, em lugar de sofrer sede e fome eternas, bem próximo de água e comida, ela dá azo a Lodovico Settembrini fazer a saborosa ironia. A fala fingida do italiano não é entendida pela personagem, pois para isto ela precisaria conhecer com detalhes os mitos. Só assim ela teria o alcance da ironia e, certamente, a sua reação às palavras do italiano seria outra.⏤ Ah, como a senhora é gentil! Concede a esse coitado do Tântalo uma pequena mudança de ocupação. Para variar, deixa-o rolar o famoso bloco de mármore. É o que se pode chamar de genuína bondade da alma...
Para uma compreensão mais consistente da passagem acima, sobretudo para entendermos que não se trata apenas de uma alusão horizontal ao mito clássico, constatamos, conforme já dissemos antes, que as referências ao mundo infernal, seja de Homero, seja de Virgílio, são muitas no romance, principalmente no terceiro capítulo, mais especificamente no subcapítulo intitulado Satã... Logo no primeiro capítulo (p. 16), o narrador alude ao tempo, comparando-o ao rio Letes, rio do inferno que provocava o esquecimento nas almas que de suas águas bebiam. Não esqueçamos que Hans Castorp, o personagem principal, a partir de sua chegada e permanência no sanatório fará uma série de referências ao tempo, cuja relatividade será um dos pilares de construção da narrativa de A montanha mágica. Essa concepção de tempo fará a diferença entre os que vivem na planície e os que vivem lá em cima, no sanatório, provocando um esquecimento em relação à vida lá embaixo, antes do sanatório. A inversão e a tensão entre mundo dos vivos – o mundo do sanatório – e o mundo dos mortos – a vida dita normal, fora do sanatório – fazem o tio de Hans Castorp, o cônsul James Tienappel, tendo ido ao sanatório resgatar o sobrinho, fazer as malas com rapidez e dali fugir, por sentir-se contaminado com aquele mundo e tentado a ali ficar também (Sexto capítulo, p. 567 e ss).
É no capítulo terceiro que se faz a devida ligação do Letes com o que diz Lodovico Settembrini, em relação aos doutores Behrens e Krokowski, tratados, respectivamente, de Radamanto e Minos (p. 85), pelo fato de serem inflexíveis no julgamento da tuberculose, no tratamento indicado e na estipulação do tempo que os internos devem passar no sanatório. O doutor Behrens e seu assistente Krokowski são, pois, como os dois juízes do inferno, referidos por Homero e por Virgílio, e desse modo citados textualmente por Settembrini – “Ali deambulam os nossos juízes do inferno” (Terceiro capítulo, p. 93).
A referência a Minos encontra-se na Odisseia, XI (versos 568-571), no conhecido episódio em que Odisseu dialoga com as almas do Hades. Minos é também referido como juiz dos infernos, na Eneida, VI (versos 431-439), no célebre episódio da descida de Enéias aos infernos, para se aconselhar com o pai. Já Radamanto, Virgílio (Eneida, VI, versos 566-569) o mostra exercendo sobre os mortos um poder impiedoso (duríssima regna, verso 566).
Há uma referência explícita a Virgílio, nesse início do romance, com uma citação do livro VI da Eneida (verso 541), em que a Sibila de Cumas mostra os caminhos do inferno que se bifurcam a Eneias. Settembrini, introduzindo Hans Castorp no sanatório, à maneira de uma Sibila da montanha, e encaminhando-se com os dois primos para o repouso obrigatório, diz: Temos o mesmo caminho, "à direita, aquele que busca os muros de Dis, o Poderoso”. Na sua alusão ao verso “uia... dextera quae Ditis magni sub moenia tendit” (caminho... à direita que se dirige ao pé das muralhas do grande Dis), é de se notar a presença de Dis ou Dite, outro nome que recebe Plutão, o deus dos infernos, na mitologia latina (Terceiro capítulo, p. 91), ajudando a compor, na sua concepção, a atmosfera infernal do sanatório.
À primeira vista de Hans Castorp, Lodovico Settembrini, conhecendo que o personagem não é interno e se encontra no sanatório apenas para uma visita ao primo, Joachim Ziemssen, põe-nos em contato direto com o Canto XI da Odisseia, fazendo a referência explícita, através da seguinte ironia:
⏤ Que diabos! O senhor não é dos nossos. O senhor é saudável, está aqui apenas voluntário, como Odisseus no reino das sombras? Que audácia descer a esta profundeza, onde os mortos vivem uma existência fútil e absurda...
Terceiro capítulo, p. 85
Hans Castorp não alcança o sentido do que diz Settembrini, pois afinal ele subira quase cinco mil pés até o sanatório... Sem entrar em detalhes, o italiano diz apenas que a subida é uma ilusão, na realidade, os que estão ali, são “umas criaturas que caíram muito baixo” (p. 85). Só gozará, portanto, o sentido pleno da ironia e da desolação de Settembrini, quem conhecer o episódio da Odisseia, em que Odisseus, a contragosto, deve descer até a entrada do Hades, de modo a entrevistar-se com Tirésias e saber detalhes do seu destino.
Não param por aí as referências. Quando Settembrini sabe que Hans Castorp ficará apenas três semanas no sanatório, ele sai-se com uma ironia finíssima, que nos permite ligar a sua resposta à primeira referência do rio Letes, ao Hades e às almas, que, para Homero, são sombras (Terceiro capítulo, p. 86):
⏤ O Dio! Três semanas! Ouviu, tenente? Não lhe parece mesmo um tanto atrevida essa maneira de dizer: “Vou passar aqui três semanas e depois partirei”? Fique sabendo, meu senhor, que nós aqui ignoramos uma medida de tempo que se chama semana. Para nós, a menor unidade é o mês. Fazemos as nossas contas em grande estilo, como é o privilégio das sombras.
O tempo no Sanatório de Berghof tem algo de eterno e imutável, a ponto de Hans Castorp não saber com certeza se já passara sete semanas ou sete dias na montanha ou se vivia ali, mais tempo do que na realidade havia se passado. Este lento caminhar para o esquecimento do tempo e, obviamente, para um sentido de eternidade se dá ironicamente no subcapítulo intitulado Liberdade (Quinto capítulo, p. 297). Se as almas têm a liberdade de vagar pela eternidade do Hades, de lá elas não podem sair, Hans Castorp tem a liberdade em relação às obrigações do mundo da planície, a partir da terceira carta que envia para a família, libertando-se inclusive dela, mas tudo se encaminha para que ele jamais saia de Berghof.
Voltemos à senhora Sthör, para finalizarmos com uma reflexão. Nada mais tedioso do que a eternidade. Seja a eternidade da felicidade, seja a eternidade da punição. O que inquieta os que são punidos é saber que todos os dias a punição se repetirá da mesma forma. Assim, Sísifo com sua pedra a rolar montanha acima sem conseguir fixá-la ao cume, a despeito do que diz Albert Camus, no célebre ensaio Le mythe de Sisyphe, afirmando que devemos imaginar a felicidade de Sísifo, enquanto ele desce para buscar a pedra e reflete sobra a sua punição. Assim, Tântalo com fome e sede, apesar de comida e bebida próximas a si, mas sem poder mitigar uma ou outra. E Hans Castorp, afinal ele se sentirá Sísifo ou Tântalo? Não teria a senhora Stöhr, “por mais estúpida e inculta que fosse” (Quinto capítulo, p. 276), antecipado por um lapsus linguae esta condição híbrida a todos que estão no Sanatório? Ao misturar os mitos, não teria a senhora Sthör querido quebrar, embora involuntariamente, essa monotonia? A resposta de Lodovico Settembrini é, sem dúvida, irônica, mas não apenas aponta para o erro mitológico da interna, aponta para a necessidade da quebra da monotonia da eternidade. O mito, assim, desvelado, não só mostra a sua verdadeira face, como adquire outras mais complexas.