A República de Platão fundamenta-se na Paideia (παιδεία), cujo objetivo é a busca da Justiça em cada um de nós, o que permitirá a sua materialização exterior, com a dikaiosyne (δικαιοσύνη), a prática da Justiça, tornando-se ela própria, dike (δίκη). Para tanto, é necessário ter a responsabilidade como embasamento para o despertar dessa prática. Sem a essência da responsabilidade, não há Paideia; sem Paideia, não há Justiça e, sem Justiça, o Estado soçobra, jamais se erige.
Ao rechaçar as ideias iniciais de Polemarco e Trasímaco, Sócrates afirma que ali não se encontra uma definição do que é justiça, mas do que não é, havendo, portanto, a necessidade de se defini-la. A melhor maneira para isto é tentar ver a justiça no macro, para depois vê-la no micro. Assim, é que surge a ideia de se criar uma Pólis (πόλις), um Εstado, cuja caracterização essencial seja a de uma cidade ideal por buscar sempre ser justa.
A primeira cidade que vem à mente de Sócrates é a de poucos recursos, mas sóbria, que atenderia às necessidades de seus habitantes, distribuídos de acordo com as habilidades de cada um, fazendo surgir de uma consciência do trabalho individual a coletividade de uma pólis autossuficiente. A cidade nesses moldes, no entanto, não é do agrado de Glauco, que a chama de “cidade de porcos”. Platão retruca que, na realidade, se trata de uma “cidade sadia”. Se Glauco quiser uma cidade maior e mais complexa, incluindo os prazeres vários, trará consigo a necessidade de expandir o número de profissionais, os limites da cidade e da sua produção, o que só seria possível com a instituição da guerra. Para que a expansão não saia do controle é que Sócrates idealiza a construção da Pólis, tendo como base a Paideia. Uma para a criança, outra para o guardião, destino da criança mais capacitada para este labor.
A paideia da criança tem como base a Música (entendida aqui com o sentido de artes, não com sentido restrito que temos de música) e a Ginástica (o exercício do corpo nu), que devem ser administradas com equilíbrio necessário a desenvolver uma mente sadia num corpo sadio. Muita música amolece o espírito, muita ginástica enrijece o raciocínio. Assim, a criança, que recebe os primeiros ensinamentos, em casa, através da música, deve ser poupada dos mitos que a desencaminham da virtude requerida pela cidade sadia. É natural, portanto, que Sócrates teça críticas aos poeta que desvirtuam o caráter dos deuses e dos heróis. Só a ministração correta e equilibrada da música e da ginástica é capaz de formar o futuro guardião da Pólis, com o ímpeto de um guerreiro e a sabedoria de um filósofo.
É assim que, mesmo reconhecendo o valor de Homero para a Paideia grega, é necessário expurgar certas passagens que mostram os deuses agindo de maneira vil e mudando de forma, para, enganando os humanos, alcançar os seus intentos nada virtuosos. Do mesmo modo, não serão admitidas as passagens que mostram os heróis temendo o Hades, chorando ou se lamentando, como Aquiles, porque isto incutirá, no espírito da criança a ser educada, valores distorcidos que a fariam preferir a escravidão à morte, quando na defesa de sua cidade. Como se trata de uma cidade guerreira, a lamúria e o choro devem ser deixados para as mulheres e os homens fracos, diz Sócrates. Os valores a ser incutidos nos jovens educandos são os da timé (τιμή), a honra, e da areté (ἀρετή), a virtude guerreira, cujo estímulo vem do ímpeto, o thumós (θυμός).
Percebe-se, assim, que a preocupação de Sócrates, quando restringe o pensamento do poeta, ainda que cheio da melhor poesia, não é apenas com uma ética e uma moral, mas com a defesa de um estado guerreiro, o que é devidamente acordado com Glauco.
Em suma, os deuses são bons por essência e causa apenas do bem; já os heróis são aguerridos e preparados para, sabiamente, enfrentar a guerra, preferindo a morte à escravidão. Surgem daí, duas das virtudes da alma: a Coragem (andreia, ἀνδρεία) e a Sabedoria (sofia, σοφία).
A partir do estabelecimento desses critérios, a cidade poderá ser erigida, tendo como fundamento a honestidade, não importando a situação em que o cidadão se encontra (veja-se a alegoria do Anel de Giges, no Livro II); a consciência crítica despertada e distanciada da letargia da aparência (Alegoria da Caverna, Livro VII) e a responsabilidade de assumir as consequências de suas escolhas (Mito de Er, Livro X). Uma cidade que se erige sobre tais fundamentos terá, necessariamente, cidadãos livres e independentes, que saberão escolher melhor seus dirigentes, procurando sempre agir para o bem comum e não em proveito próprio.
Respondendo, portanto, aos que imputam a Sócrates/Platão a expulsão do poeta da República/Pólis, diríamos que não é verdade. O poeta será sempre bem acolhido, desde que o seu discurso poético esteja adequado às necessidades de se manter um estado capaz de se defender de seus inimigos externos e dos amigos internos, sendo este os mais temíveis. O que se deseja instaurar na Pólis vai além da fatuidade e do moralismo. Deseja-se uma moral útil, instrumento da defesa do Estado, cuja finalidade é a distribuição da Justiça para os seus cidadãos. Para isto, a criança, futuro guardião, deve ser educada nos princípios morais de um estado que vivencia a guerra, devendo agir diante de tal circunstância, com sabedoria e com coragem.
As boas fábulas (Música) ajudarão na modelação da criança, acrescentando ao caráter da criança a Temperança (sofrosyne, σωφροςύνη). A imitação (mímese, μίμησις), como criação poética, deve seguir esse perfil, desde a infância, porque é nesse momento que se constrói a personalidade do futuro homem/guardião. Não há como se fazer uma discussão da imitação em Platão, sem que se levem em conta as necessidades de construção de um estado guerreiro, que usa a ética como instrumento da Justiça.
A Paideia, que deve estar ao alcance de todos, na concepção platônica, estimulava as quatro virtudes cardinais da Psiquê (Alma, ψυχή), aqui já referidas: Sofia, Andreia, Sofrosyne e Dike. Essenciais para um estado aristocrático. Entenda-se, no entanto, que a Aristocracia defendida por Platão não deve ser confundida com a aristocracia de nobreza (Monarquia) ou de dinheiro (Plutocracia), cujo modelo pífio é a francesa dos Luíses. A Aristocracia era o governo dos melhores, porque todos foram submetidos à mesma educação e às mesmas provações, tendo como objetivo educar para a Justiça, o que significa a prática incessante e diuturna de ações justas, com a finalidade do bem comum.
Portanto, dando oportunidades iguais a todos, sob o encargo do Estado, o melhor (áristos, ἄριστος) deverá ser o que deve governar (kratéō, κρατέω) com Sabedoria, para o discernimento; Coragem, para agir contra os inimigos de fora e os amigos de dentro; Temperança, para saber a medida do que é justo e não passar de seus limites, assegurando a boa Justiça para todos.
O filósofo, aquele que ama saber (não é o que ama o saber...), que passa a vida refletindo sobre o sentido da Justiça, como o fez Platão, é que, evidentemente, deveria ser o governante. A formação do filósofo, diga-se, estava também circunscrita na Paideia, instituição fundamental para se instituir o bem comum.
Em outras palavras: A Educação equilibrada, corajosa e sábia gera a Justiça.