A um encadernador desconhecido Alegra a alma ver uma coisa bem feita (qualquer coisa bem feita), nestes tempos de tanto serviço mal ...

A coisa bem feita

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A um encadernador desconhecido

Alegra a alma ver uma coisa bem feita (qualquer coisa bem feita), nestes tempos de tanto serviço mal feito. Encontrar um marceneiro, um pedreiro, um padeiro, um encanador, um eletricista, enfim, alguém que faça um serviço bem feito é difícil.

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Eu ando à cata de um profisional que vem desaparecendo vertiginosamente: um encadernador. Se é difícil encontrar outros profissionais liberais que façam um serviço bem feito, mais difícil ainda é encontrar um encadernador, que faça um trabalho pelo menos razoável! Imagine, então, encontrar um encadernador à moda antiga, daquele tipo que vivia cada passo do processo da encadernação, que escolhia agulha, linha, tela, pano, papel e cartão ou couro em harmonia com o livro e reunia toda sua ciência e arte visando preservar a beleza e a integridade do livro!

Esse amor à coisa bem feita pode ser encontrado em qualquer coisa, até mesmo num simples anúncio de besta desaparecida, esquecido num soterrado jornal de província, como nos mostra Carlos Drummond de Andrade ao comentar esse anúncio, em uma crônica inesquecível, que dá ao esquecido anúncio estatuto de presente perene.

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Esse amor à coisa bem feita estava nas urupemas rijas e sóbrias que o avô de Graciliano levava dias fiando, ao arrepio do método pressuroso dos fabricantes de urupema da região.

Esse amor à coisa bem feita estava na galinha capoeira que minha mãe fazia, passando de um dia para o outro, do refogado inicial ao tempero final, e que dava o tom de festa natalina aos almoços de cada prosaico domingo de minha infância e cujo saboroso cheiro continuo procurando em cada galinha vã que surge à minha mesa.

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A coisa bem feita é essencial, mas, neste mundo de pressa e gambiarras, fica difícil encontrar algo bem feito, porque a coisa bem feita exige esforço, exige paciência, exige tempo, enfim: exige mãos de amadores, inteiras, concentradas – e, em geral, os profissionais só colocam um pedaço da mão, quase sempre dispersa e pressurosa, no que fazem.

Erguem-se merecidos monumentos ao soldado desconhecido, ao médico desconhecido, ao ilustre desconhecido... Eu quero ao menos erguer essa singela página ao encadernador desconhecido. O talento de Keats, numa ode, pôs uma urna
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grega num museu atemporal; a criativa geometria de João Cabral converteu a solúvel aspirina numa indelével ode – falta uma ode ao encadernador desconhecido. Eu quero ao menos registrar, embora em transitória prosa, minha homenagem ao artista desconhecido que encadernou o exemplar do livro que tenho em mãos. O exemplar já tem uma certa idade, mas, à exceção de um pouco de oxidação (que é do papel), o esmero na encadernação fica visível na juventude de todas as partes do livro, na agradável textura de seu pleno marroquim vermelho que encapa o livro. Mas além do esmero na composição material deste exemplar, foi preciso um lampejo de criatividade para preservar a totalidade do exemplar. Um bom encadernador, ao encadernar um livro, sempre preserva a capa e a contracapa originais do livro, mas como preservar a lombada original se, ao colocar a capa da encadernação, não há como a lombada original ficar visível? Pois este encadernador encontrou uma maneira. Olhando o resultado, a idéia pode parecer simples, mas os meus olhos, em que tantas encadernações vistas puseram óculos, jamais viram lombada original em livro encadernado. Pois esse encadernador encontrou um jeito de preservar a lombada original do livro! Ele não apenas encadernou um livro: fez, com as mãos e com materiais concretos, algo que eu não consegui fazer com palavras: uma ode à preservação do livro!

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