A lei maior do Universo é o movimento. Para Platão, a imortalidade da alma se dá por ela estar sempre em movimento. Com a Literatura não poderia ser diferente. O movimento é que permite a literatura alimentar-se de literatura e espalhar-se, incessante e ilimitadamente, em vasos comunicantes. É o que teoricamente se chama de intertextualidade ou de transtextualidade, caso a escolha recaia sobre Julia Kristeva ou sobre Gérard Genette.
Vejamos um bom exemplo desse movimento. Só peço um pouco de paciência aos meus leitores, para poder fazer o trajeto, envolvendo quatro poetas: dois latinos, um português e um brasileiro.
O poeta Luís Vaz de Camões foi apresentado ao Brasil por Pero de Magalhães de Gândavo, naquela que se pode chamar a primeira história do Brasil, impressa em Lisboa, na Oficina de António Gonçalves, no ano de 1576 – História da província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. Gândavo faz a apresentação do poeta maior da Língua Portuguesa, através de dois poemas elogiosos
Dois anos após a publicação dessa obra e do desastre em Alcácer-Quibir, começa a ser escrita, em Olinda, a primeira obra literária do Brasil, em língua portuguesa, Prosopopeia, do cristão-novo Bento Teixeira. Embora a obra tenha sido publicada apenas post-mortem, em 1601, o momento de sua escritura revela uma sincronicidade com Os Lusíadas. Sem alongar muito a conversa, diremos que o poemeto de Bento Teixeira (apenas 752 versos, o que não representa nem um décimo do poema camoniano, que conta com 8816 versos) tem como modelo o grande épico de Camões, no fundo e na forma.
Em o meio desta obra alpestre e dura, | A |
Uma bica rompeu o mar inchado, | B |
Que, na língua dos bárbaros escura, | A |
Paranambuco, de todos é chamado. | B |
De Para’na, que é Mar, Puca rotura, | A |
Feita com fúria desse Mar salgado, | B |
Que sem, no derivar, cometer míngua, | C |
Cova do Mar se chama em nossa língua. | C |
J.B. Debret, 1839
Os cabelos da barba e os que decem | |
Da cabeça nos ombros, todos eram | |
Uns limos prenhes de água, e bem parecem | |
Que nunca brando pente conheceram. | |
Nas pontas pendurados não falecem | |
Os negros mexilhões, que ali se geram. | |
Na cabeça, por gorra, tinha posta | 7 |
Ũa mui grande casca de lagosta. | 8 |
C.A. Goering, S.XIX
Quando ao longo da praia, cuja areia
É de Marinhas aves estampada,
E de encrespadas Conchas mil se arreia,
Assim de cor azul, como rosada.
Do Mar cortando a prateada veia,
Vinha Tritão em cola duplicada,
Não lhe vi na cabeça casca posta
(Como Camões descreve) de Lagosta.
M. J. Heade, S.XIX
A primeira estrofe da Prosopopeia revela o diálogo inequívoco com Os Lusíadas, para ficarmos apenas no que interessa neste momento:
Cantem Poetas o Poder Romano,
Submetendo Nações ao jugo duro;
O Mantuano pinte o Rei Troiano,
Descendo à confusão do Reino Escuro;
Que eu canto um Albuquerque soberano,
Da Fé, da cara Pátria firme muro,
Cujo valor e ser, que o céu lhe inspira,
Pode estancar a Lácia e Grega lira.
T. Cole, 1836
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
J.M.W. Turner, 1818
Camões afirma ser o Amor 'um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não sei porquê.'Esse modo de exaltação de uma nova forma, de um novo assunto, de um novo herói ou de um novo evento, servindo a uma exaltação de si próprio, não para em Bento Teixeira, embora o utilizemos como limite de nosso texto, cuja intenção é recuar, tanto quanto seja possível, até onde isso se verificou o fato pela primeira vez. Bem antes de Bento Teixeira e de seu modelo, Luís Vaz de Camões, o poeta latino Marcial (42-102) fez uso do mesmo procedimento, para louvar a construção do Coliseu, no seu Livro dos espetáculos, como obra ímpar, no momento da sua inauguração, no ano 80, quando Roma vivia sob o poder do imperador Tito (Spectaculorum Liber, estrofe 1, tradução nossa, em versos heptassílabos duplos):
Barbara pyramidum sileat miracula Memphis,
Assyrius iactet nec Babylona labor;
nec Triuiae templo molles laudentur Iones,
dissimulet Delon cornibus ara frequens;
aëre nec uacuo pendentia Mausolea
laudibus inmodicis Cares in astra ferant.
Omnis Caesareo cedit labor Amphiteatro,
unum pro cunctis fama loquetur opus.
Silencie a Mênfis bárbara o prodígio das pirâmides,
nem exalte a Babilônia, o labor do povo assírio;
nem se louve o mole Jônio, pelo templo dado à Trívia,
e que Delos se ignore com os chifres do altar;
e pois nem no ar vazio, os suspensos Mausoléus,
com imódicos louvores, leve aos céus o povo Cário;
ao Cesáreo anfiteatro, cederá todo labor,
e em lugar das obras juntas, só dirá de uma a fama. |
C.G. Carus, S.XIX
Propércio ▪ Fonte: Wikimedia
Cedite Romani scriptores, cedite grai!
Nescio quid maius nascitur Iliade.
Cedei, escritores Romanos; cedei, Gregos!
Um não sei o quê nasce maior que a Ilíada. |
Aos verbos “cantem” (Bento Teixeira), “cessem” (Camões), “silencie” (Marcial), precede o “cedei” (cedite) de Propércio. De quebra, o poeta latino nos brinda com uma síntese do que seriam duas ideias camonianas: a de excelência poética, conforme já constatamos, e uma de suas definições de Amor (Soneto 12, “Busque Amor novas artes, novo engenho,”), em que Camões afirma ser o Amor “um não sei quê, que nasce não sei onde,/ vem não sei como, e dói não sei porquê.”
C.D. Friedrich 1818