“Você está perto da insulina”, advertiu-me a médica depois de correr as vistas pelo exame de sangue que me havia prescrito, dias antes. Substituiu pela sisudez o semblante risonho com que me recebera no consultório de onde eu iria sair, instantes depois, com medicação nova, uma lista enorme de restrições alimentares e a intimação: “Quero vê-lo em outubro”. Isso foi em julho e, desde então, tenho fugido dela.
Em marcha corrida para os 80, a diabetes é o menor dos meus problemas, penso eu. Afinal, de 15 dias para cá, sou obrigado a levar tiros de um acelerador linear, “o melhor equipamento deste gênero no Brasil”, no dizer do amigo Carneiro Arnaud. No seu hospital, prescreveram-me 38 aplicações diárias, cada uma de três minutos, na área onde, quando bebê, minha mãe passava talco. O problema somente não me era de todo desapercebido em razão de ardência recente no canal, na hora da micção. Dada a proximidade do meu local de trabalho, vou a pé ao tratamento e, assim, também retorno dali ao Tribunal de Contas. Tento compensar, desse modo, o exercício físico na Academia do meu prédio, interrompido, por enquanto.
Mas não é disso que eu desejo falar. O que pretendo mesmo é tratar, aqui, de grandes e repetidas carências. Como me fazem falta as tapiocas, tenham os recheios que tiverem. Fujo da primeira médica, mas não das suas proibições. Insulina é fogo, pessoal. Prefiro uísque.
Ah, como ando a sonhar com uma bela macarronada no alho e óleo e seu fiel acompanhante, um parmesão bem ralado. Como desejo um pãozinho quente aberto em bandas que suplicam por manteiga, um bolo de laranja em calda grossa, um manguzá com leite de coco e pitadas generosas de cravo e canela. Ocorre-me, então, a definição recente de um primo para a melhor das feijoadas: “É aquela que requer uma ambulância à porta”. E, assim mesmo, como eu a quero.
Nunca fui comilão, satisfaço-me, geralmente, com pequenas porções. O glutão que eu agora incorporo decorre, momentaneamente, desses meus impedimentos. O fato é que somente então percebo, em sua dimensão exata, aquela velha sentença: “Tudo o que é proibido é bom”.
Perdoem-me os quakers, povo temente a Deus, gente de grande retidão, mas ando com raiva deles. Por que não impediram aquela imagem de cabelos brancos e longos, lenço enorme no pescoço, roupa e chapéu pretos na embalagem universal da farinha e flocos de aveia?
Afinal, nem quaker era o sujeito que resolveu cultivar, processar, embalar e vender esse produto nos cinco continentes, ao que me indica a leitura de um artigo assinado por Jorge Cruz, doutor em bioética, especialista em angiologia e cirurgia vascular, além de membro de associações internacionais diversas. Trata-se, evidentemente, de gente que sabe o que diz.
Séculos atrás, conta ele, os quakers, em bom número, transformaram-se em banqueiros e empresários de sucesso. Citem-se o londrino Banco Barclays (surgido em 1690), o Lloyds (de Birmingham, em 1765) a Western Union (especializada na transferência de dinheiro), além de uma siderúrgica, fábricas de sapatos e de chocolates pertencentes a integrantes desse movimento religioso. No Século 19, a luta pelo sufrágio das mulheres teve a participação dos quakers e, mais recentemente, o Greenpeace e a Anistia Internacional. Não se deu à toa a atribuição do Prêmio Nobel da Paz, em 1947, às suas (deles) organizações Friends Service Council (de Londres) e American Friends Service Comitee (com sede em Washington), segundo a mesma leitura. Foi quando quaker virou sinônimo de êxito e qualidade.
Antes, era insulto. O grupo, em suas origens surgiu como Religious Society of Friends na Inglaterra do Século do Século 17 por iniciativa de George Fox. Este moço abandonara a Igreja Anglicana ciente de que Deus habita os corações, não os templos. Pacifistas, ele e os seus recusavam o serviço militar e combatiam a escravidão. Perseguidos e presos no reinado de Carlos II, Fox e seus amigos receberam do juiz Jeremy Bennett a alcunha de “quakers”, termo traduzido por “medrosos”. Não foi assim? Pois bem, foi como li.
Mas voltemos à questão inicial. Como não gostar de um quaker genuíno? A bem da verdade, não desgosto. O que não suporto é aquela figurinha com um riso esquisito nas caixas de aveia, porquanto a tenho, enfadonhamente, ao alcance dos olhos, da mesa e do prato, todo santo dia. Aveia, minha gente, é uma das poucas coisas que não me cortaram.
Alguém disse, aqui em casa, que alimentos fibrosos servem para reduzir a absorção da frutose e, desde então, a maçã, o morango, o abacate, a ameixa e a goiaba me chegam – moderadamente, é claro – com cobertura de aveia em flocos, como se fosse granola.
Nunca comi tanto mingau e tanta papa desde meus cueiros. Os bolos que ganho, quando permitidos, são feitos com banana d’água amassadas, aveia, fermento e canela. Essa coisa, eu juro, tem gosto de desilusão.
A patroa, façamos justiça, até que se esforça na variação do cardápio. Ontem mesmo, temperou peito de frango em cubos com pouco sal, pimenta e páprica. Bateu alguns ovos à parte, neles mergulhou cada cubo e levou tudo para uma tigela com farinha de aveia à guisa de empanado. O preparo foi ao forno, em seguida, com fatias de laranja. A coisa até que desceria bem, não fosse aquele sujeito, com lábios de Monalisa, a zombar das minhas desventuras.