A releitura do texto Cartografia da solidão: memórias de um jovem leitor, do escritor Bruno Gaudêncio, publicado no livro Confesso que li (Editora Ideia, 2012), me conduz até as memórias de minhas leituras feitas também na adolescência Nas “memórias de um jovem leitor”, Bruno relembra, entre outras leituras, o romance Olhai os lírios do campo, de Érico Veríssimo. Foi um livro tão marcante que guardou na sua estante até hoje, esse fato me fez lembrar O Tempo e o Vento, leitura que fiz na adolescência, mas o meu livro teve um destino bem trágico.
Quando completei quinze anos, uma amiga que sabia da minha preferência pelos romances de Érico Veríssimo me presenteou com O Tempo e o Vento. Já havia lido outros romances do autor – Clarissa, Olhai os lírios do campo, Caminhos cruzados, Música ao longe, Saga... estava diante de um novo livro do escritor gaúcho que reunia três romances – O Continente, O Retrato e O Arquipélago e contava a história do Rio Grande do Sul, era um romance histórico. Na dedicatória que me fez de O Tempo e o Vento, a amiga transcreveu a primeira estrofe do poema de Machado de Assis, Menina e Moça:
Está naquela idade inquieta e duvidosa,
Que não é dia claro e é já o alvorecer;
Entreaberto botão, entrefechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher.
Passei muito tempo lendo aquele livrão e me apaixonei por alguns personagens, entre eles Ana Terra, Bibiana e o capitão Rodrigo Cambará. Foram momentos de deleite e o livrão me acompanhou por vários lugares – Maceió, Recife, João Pessoa e Praia Azul, litoral sul da Paraíba. Morando em apartamentos, tive que redistribuir os livros e O Tempo e o Vento ficou guardadinho em uma estante em Praia Azul, na primeira prateleira, local bem visível. Estava bem conservado, sou leitora ciosa da importância dos livros e procuro mantê-los bem limpos e arrumados. A leitura daquele romance me empolgou na fase tão bem descrita por Machado de Assis no poema Menina e Moça.
Recentemente, resolvemos mudar o piso da casa da praia e contratamos dois pedreiros para executar a tarefa. Certo dia fui verificar o andamento dos serviços, e vi que todos os livros da estante estavam no chão misturados com metralhas. Quase chorei ao me deparar com tamanha insensatez! No meio de cimento, areia e tijolos procurei meu querido livro, companheiro de muitas horas de leitura, foi tudo em vão, impossível encontrar aquela preciosidade no meio de tanto descarte.
Os dois rapazes contratados tinham o ensino médio completo, sabiam ler, escrever, fazer contas, mas não tinham nenhuma sensibilidade literária. Certamente, em suas casas, o “objeto sagrado” não fazia parte dos alimentos do espírito e me lembrei de Agripino Grieco que guardava seus livros em vários locais, até na cristaleira, misturados com pratos, copos e alimentos. Diante da admiração de um visitante por essa maneira inusitada de guardar livros na cristaleira, ele retrucou: “não dizem que os livros são alimentos do espírito...”
A releitura do texto de Bruno Gaudêncio me levou a estas reflexões. O Tempo e o Vento foi destruído, mas restou a lembrança da leitura feita quando tinha quinze anos, a lembrança do oferecimento da amiga e a morte de um livro, um “ente” muito querido. Os livros, como as pessoas, também morrem. Alguns caem no esquecimento, outros são queimados em praça pública como Hitler fez durante a 2ª Guerra Mundial, há também os que são destruídos pela insensatez de pessoas não acostumadas com a leitura e com o verdadeiro valor do livro, morrem queimados ou são jogados no lixo como material descartável.
O escritor Bruno Gaudêncio teve mais sorte com o livro de Érico Veríssimo lido na adolescência, conserva-o até hoje na sua estante. Chegou a transcrever no texto que escreveu para Confesso que li esta frase dita por um dos seus personagens: “Felicidade é a certeza de que a nossa vida não está se passando inutilmente”. O meu livro predileto da adolescência teve um destino trágico - foi assassinado, morreu na primavera quando os pau-d’arcos floridos desabrochavam suas primeiras flores amarelas. É uma pena!