Acompanhei moradores de rua com seus cães e pude perceber que, mesmo vivendo em situações desfavoráveis, esses indivíduos são capazes de acolher e cuidar dos companheiros caninos, oferecendo certos tratamentos que, às vezes, não podem dar a si mesmos. No trato com os animais, essas pessoas revelam um zelo especial com a alimentação e a higiene, gerando
uma autorresponsabilidade que influencia o bem-estar dos cães. Por vezes, a situação em que vivem limita os cuidados, mas eles dizem receber doações de pessoas com quem dividem suas histórias e lamentos. Há um aumento considerável na quantidade de esmolas e de refeições quando percebem que o morador de rua está cumprindo um papel social ao tutelar um cão que, na concepção das pessoas, não poderia viver sozinho na massacrante urbe dos homens. O cão se torna, portanto, um mediador entre o pedinte e as outras pessoas. Leia um trecho de uma dessas entrevistas que fiz quando acompanhei moradores de rua:"Cara, minha menina (filhote de vira-lata) ganha muita comida. Comida de gente, viu! Ganha muita comida, ela nem come tudo. Até eu como a dela, de tão boa que é. A moça da 'Oingue' traz as coisa pra ela e pros outro. Os cachorro tudo aí que cê tá vendo
tem vida melhor que nóis da rua!" [sic].
Outro aspecto revelado pelos inúmeros depoimentos que fiz com esses moradores está relacionado à comunicação invisível entre o humano e seus cães. Esse fato remonta a uma questão que parece rudimentar, mas que, na verdade, está associado há séculos de experiência dos humanos com os outros animais. Para o cientista Yuval Noah Harari, há relação de comunicação entre todas as espécies animais na natureza. Um macaco sabe distinguir um ronco de um leão de um rosnado a quilômetros de distância. Um grito de uma gazela fêmea que está dando à luz é compreendido por uma hiena que deseja se aproveitar da situação para comer o filhote recém-nascido. O historiador israelense afirma que o homem certamente já compartilhou dessa comunicação entre espécies e que estava incluído nesse contexto linguístico comum a todos os animais antes de sofrer uma mutação no cérebro que o tornou "sábio". Essa mutação, ocorrida há 70 mil anos, causou uma mudança estrutural do cérebro humano. Harari chama essa mudança de "Revolução Cognitiva", que levou os sapiens a se organizarem de maneira mais complexa e desenvolverem a capacidade de trocar informações entre si, tornando-se animais sociais. À medida que os sapiens passaram a se comunicar exclusivamente entre si e a desenvolver estratégias de controle sobre outros animais e fenômenos naturais, como o fogo e o tempo, eles passaram a acreditar que eram seres divinos e, portanto, hierarquicamente superiores a todos os outros. No curso da história antropológica, pode-se observar que os humanos se sobrevalorizam e consideram-se extremamente importantes, mas essa importância é apenas para si mesmos e não para o resto dos animais, como erroneamente pensam.
Os moradores de rua, com sua linguagem não-verbal e seus "bicos", agem nas urbes modernas como caçadores-cole-coletores típicos do período anterior à revolução agrícola. Sua natureza nômade, errante, com base na troca e no recolhimento de comida e na autopreservação, assemelha-se ao comportamento dos homens do Período Paleolítico.
É importante salientar que os Homo sapiens possuem dois milhões de anos de existência e só desenvolveram as habilidades coletivas atuais há 70 mil anos, e as habilidades agrícolas, que possibilitaram a formação de grandes grupos sociais organizados, há apenas 12 mil anos. Acredito, portanto, que, apesar de todo o esforço praticado pelos moradores de rua, é ainda maior o esforço que toda a sociedade realiza para manter-se "civilizada", presa a uma alimentação inorgânica e a um sistema de trabalho opressor (ou trabalho de sísifo), vivendo em habitações pequenas, encarando jornadas de trabalho extenuantes e submetida a representações de poder e a restrições das normas sociais e obrigações, embora isso seja considerado um fator social essencial.
Se essa premissa fizer sentido para você, caro leitor, será evidente porque os vira-latas dos carroceiros eram tão felizes em sua companhia. A partir desse ponto de vista, torna-se fácil compreender os motivos que os levaram a esperar por seu parceiro das ruas por um tempo na porta do hospital. Ao lado de seu fiel amigo, esses cães podiam agir de acordo com seus instintos, praticando suas ações ancestrais com uma mínima adequação. De maneira espontânea, eles podiam uivar, latir, caçar, lutar entre si, coçar suas pulgas, proteger o grupo, compartilhar alimentos encontrados no chão, farejar o entre e sai das pessoas, percorrer longas distâncias, dormir juntos para se protegerem do frio e da violência, além de se anteciparem para reconhecer a imprevisibilidade das ruas.
* Do livro de Francci Lunguinho e Vladimir Lobato 'O Treinamento Invisível', publicado recentemente (Editora Arribaçã), disponível pelo WZap: (21) 965266499 e na 👉🏽 Amazon