Para Diva Monteiro, Fernando Aquino, Heloísa Rodrigues, Jacklena Montenegro, Jacqueline de Moraes, Lindalva Sarmento e Maria Luíza Ca...

O primeiro Natal institucional

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Para Diva Monteiro, Fernando Aquino, Heloísa Rodrigues, Jacklena Montenegro, Jacqueline de Moraes, Lindalva Sarmento e Maria Luíza Cavalcanti.

Nas Metamorfoses, o poeta Ovídio narra, entre outros, o mito de Faetonte (Livro I, versos 746-778; Livro II, versos 1-400). O jovem Faetonte, insultado pelo amigo Épafo, filho de Io e Júpiter, resolve tirar a limpo a dúvida de ser ou não filho de Febo, o deus condutor do Carro do Sol, “luz pública do mundo imenso” (lux inmensi publica mundi, Livro II, verso 35).

Ao chegar ao palácio de seu “duvidoso pai” (dubitati parentis, II, verso 20), Faetonte admira a magnífica construção da porta, operada por Mulcĭber (verso 5), um dos epítetos de Vulcano, o deus-faber,
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de que se destacavam os doze signos do Zodíaco: seis, na folha direita; seis, na folha esquerda. Ele vê Febo sentado “em seu luzente trono de claras esmeraldas” (in solio Phoebus claris lucente smaragdis, verso 24), como também vê as quatro estações, cada uma representada por um seu atributo: a “Primavera cingida de florente coroa” (Verque novum cinctum florente corona, verso 27); o “Verão, nu, portando guirlandas de espiga” (nuda Aestas et spicea serta gerebat, verso 28); o “Outono, sujo de uvas calcadas” (Autumnus, calcatis sordidus uvis, verso 29) e o “Inverno glacial hirsuto de cabelos encanecidos” (glacialis Hiems, canos hirsuta capillos, verso 30).

Faetonte pede, então, a Febo para “afastar de seu ânimo a incerteza” (hunc animis errorem detrahe nostris, verso 39), e o deus lhe responde com a verdade, confirmando ser seu pai. Para que não restem dúvidas, Febo resolve lhe conceder um presente à sua escolha. Faetonte lhe pede para guiar o Carro do Sol, sendo inútil a tentativa do pai de dissuadi-lo de um serviço que não coube, na partilha, aos mortais: Sors tua mortalis, non est mortale quod optas (O teu quinhão é mortal, não é mortal o que escolhes, verso 56).

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Faetonte na carruagem de Febo (Apolo)Nicolas Bertin, 1720
O resultado todos sabem. Como Faetonte pediu uma punição e não uma honraria (non honor est: poenam, Pheton, pro munere poscis, verso 99), o desastre é certo. Não tendo pulso para guiar os “quadrúpedes fogosos” (quadrupedes animosos, verso 84), a quadriga dos cavalos “que vomitam fogo, saciados com o suco de ambrosia” (ignemque vomentes,/ambrosiae suco saturos, versos 119-120) assume o comando, ao notar a fragilidade das mãos que seguram as rédeas. Para evitar uma tragédia maior, como o incêndio do Céu, Júpiter fulmina Faetonte com um raio (versos 311-13):

Intonat et dextra libratum fulmen ab aure misit in aurigam pariterque animaque rotisque expulit et saeuis compescuit ignibus ignes.
Troveja e com a destra, balanceado raio, da orelha lança no auriga e, igualmente, da vida e do carro expulsou-o, e com cruel fogo deteve as chamas.
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A Queda de FaetonteJ.C. van Eyck, S.XVII
Febo imputa a seus cavalos a morte do filho, repreende-os e os açoita com crueldade (Phoebus equos stimulosque dolens et verbere saevit:/ saevit enim, natumque obiectat et imputat illis, versos 309-400).

Quais são as lições de Astronomia que aprendemos com Ovídio, no mito de Faetonte? A primeira lição é a de que o Universo vive em perpétuo movimento, arrastando em sua órbita célere os astros (adsidua rapitur vertigine Caelum/sideraque alta trahit celerique volumine torquet, verso 70-71). A segunda lição consiste na consciência do movimento oblíquo do Sol, na sua passagem pelas doze constelações do Zodíaco (na realidade, atualmente, são treze, contando-se a constelação de Ofiúco ou Serpentário, entre Escorpião e Sagitário), itinerário que nunca passa das três zonas, evitando o polo Sul e o polo Norte (versos 131-133):

Sectus in obliquum est lato curvamine limes, zonarumque trium contentas fine polumque effugit australem iunctamque aquilonibus arcton.
O limite da ampla curva é seccionado em oblíquo, contido no fim das três zonas, e evita o polo Austral e a Ursa, junta aos ventos aquilões.
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É admirável que já existisse, na transição do século I a. C. para o século I d. C., quando o poema foi construído, uma concepção da eclíptica solar, confirmada pela Astronomia moderna, cujo movimento oblíquo jamais ultrapassa, ao Norte, o Trópico de Câncer, e, ao Sul, o Trópico de Capricórnio, ficando o Sol dentro das três zonas da Terra – Câncer, Equador e Capricórnio –, não atingindo o polo Austral ou Sul nem o polo Norte, marcado pela estrela Polar da Ursa Menor, em linha reta com a Ursa Maior, Arcton.

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Constelação de Ofiuco (Serpentário)S. Hall, 1825
Qual a relação dessas informações captadas no monumental poema de Ovídio, com o Natal instituído pelo Cristianismo? Aparentemente, nada. Essencialmente, tudo. Ainda que Febo tenha se referido ao Serpentário, nas suas instruções a Faetonte, como a “serpente tortuosa” (tortum anguem, verso 138), lembremos que a porta do seu templo só prevê 12 signos do Zodíaco, seis em cada folha, como já nos referimos antes, não 13, o que incluiria o Serpentário, mas também tiraria o equilíbrio da distribuição, na magnífica obra de Vulcano. Entendendo dessa maneira, podemos estabelecer, com certa cautela, as datas atuais da passagem do Sol, na sua eclíptica, de acordo com o estabelecido pela Astrologia, de modo a identificar os seus limites entre as constelações de Câncer e de Capricórnio.

Para a constelação de Câncer (21/06 a 22/07), que limita o trópico ao Norte, a data do Equinócio de Primavera (referindo-me ao hemisfério Norte) se dá entre 20 e 23 de março, acontecendo, no antigo calendário romano de 10 meses, no dia 25 de março, o que correspondia ao Oitavo Dia Antes das Calendas de Abril. Para a constelação de Capricórnio (22/12 a 19/01), que limita o trópico ao Sul, a data do Solstício de Verão (também para o hemisfério Norte) é o dia 21 de dezembro, dia mais curto do ano. O Solstício, no primitivo calendário romano de 10 meses, caía no dia 25 de dezembro, o que correspondia ao Oitavo Dia Antes das Calendas de Março;
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Afresco do Palácio de Nero, encontrado em 1668 (Roma) ▪ Ashmolean Museum
já no calendário de Numa Pompílio, de 12 meses, com janeiro e fevereiro ao final, ou com o de Júlio César, vigente à época de Ovídio, com janeiro e fevereiro, no início do ano, essa data dizia-se Oitavo Dia Antes das Calendas de Janeiro.

Esclareça-se que no calendário estabelecido por Rômulo, o ano começava em março e terminava em dezembro, totalizando dez meses, para igualar-se à gestação das mulheres, conforme a contagem romana: contava-se o mês da saída e o mês da chegada, com as mulheres engravidando por volta de 15 de março e dando à luz uma criança, por volta de 15 de dezembro, conforme atesta o próprio Ovídio, no Livro I dos Fastos (versos 34-35):

Quod satis est utero matris dum prodeat infans, hoc anno statuit temporis esse satis.
Como há um tempo suficiente, necessário para a criança sair do útero da mãe, desse tempo, ele estabeleceu ser suficiente para o ano.

Com o Concílio de Niceia, em 325 de nossa era, a Igreja Cristã determinou a consagração do dia 25 de março para a Páscoa, sempre coincidindo com o Equinócio da Primavera, de modo a simbolizar a ressurreição de Cristo. O Concílio não se referia ao Natal,
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Celebrando o Sol NascenteF. Bronnikov, 1869
que veio a ser instituído por Constantino, com a ajuda de Silvestre, bispo de Roma, por tê-lo, segundo a tradição, milagrosamente curado de lepra, ao ser por ele batizado. Por volta de 336, Constantino, tendo por base o Solstício de Inverno, determinou o dia 25 de dezembro para a data do Nascimento de Cristo. A lógica para a datação está no limite de avanço do Sol, que começa o retorno de sua eclíptica, depois de atingir o Trópico de Capricórnio. Se no Solstício de Inverno, acontece o dia mais curto do ano, ele determina o fim do velho Sol, sendo o dia seguinte, o dia do nascimento do novo Sol, o Natalis Solis Invictus (o Natal do Sol Invicto), festa pagã de ressurgimento da luz, em que se faziam sacrifícios públicos e jogos em sua honra; luz que só tende a crescer até o Solstício de Verão, em junho. É o que diz Ovídio (Fastos, Livro I, versos 163-164):

Bruma noui prima est ueterisque nouissima solis; Principium capiunt Phoebus et annus idem.
O solstício é o primeiro dia do sol novo e o último do velho; Febo e o ano captam o mesmo princípio.

O nascimento do novo Sol passou a determinar, portanto, o nascimento de Cristo, que apregoou ser a luz do mundo (Eu sou a Luz do Mundo, ἐγώ εἰμι τὸ φῶς τοῦ κόσμου, João 8, 12). Verifica-se, então, que uma antiga festividade pagã deu azo à instituição do primeiro Natal. Associava-se assim, a ressurreição de Cristo, no dia 25 de março, por ocasião da Páscoa cristã, com o renascimento da natureza, na Primavera, fechando um ciclo com o seu nascimento em 25 de dezembro.

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C.D. Friedrich, 1830
O arqueólogo Andrea Carandini (La casa di Augusto: dai Lupercalia al Natale, Roma-Bari, Laterza, 2008, p. 108-109) aponta esses fatos como a melhor hipótese para a criação do primeiro Natal, celebrado na Basílica di Anastácia, construída por Constantino, em homenagem à irmã. A hipótese tem como fundamento o documento Depositio Martyrum, pertencente ao calendário litúrgico de 336 d. C., fixando o Natal em 25 de dezembro.

Como palavras finais, diríamos que as evidências históricas são claras, algumas abonadas pela poesia. No entanto, para quem tem Fé, pouco importa quando Cristo nasceu, o que realmente importa é que o seu nascimento, material ou espiritual, mudou a feição do mundo e nos concedeu a esperança de salvação e renascimento, pela mensagem de Amor que trouxe, indistintamente, para todo, como uma Boa Nova, o Evangelho (Εὐαγγέλιον).


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