Os antigos egípcios tinham uma relação ambivalente com os hipopótamos. Embora os animais fossem dotados de qualidades positivas, eram também temidos e considerados perigosos, imprevisíveis e imponentes. Quando se sentem ameaçados tornam-se extremamente agressivos. Com as suas enormes presas e comportamento territorial feroz,
esses animais herbívoros representavam uma ameaça constante à população, que dependia do rio para a agricultura, transporte e pesca.
Além de destruírem plantações* e revirarem embarcações, os ataques de hipopótamos resultavam frequentemente em ferimentos graves e mortes. Contudo, evidências de que algumas pessoas também sobreviveram podem ser encontradas, por exemplo, numa antiga receita médica egípcia prescrita a alguém para curar ferimentos causados por mordidas de um hipopótamo.
Esse perigo palpável marcou profundamente o imaginário egípcio, elevando o hipopótamo a uma posição ambígua na cultura e na religião do antigo Egito.
No plano simbólico, do Novo Reino (cerca 1550-1070 a.C) em diante, os hipopótamos foram associados ao caos e à desordem, personificados na figura do deus Seth, o antagonista de Hórus na mitologia egípcia. Seth era o deus do deserto, da violência e da desarmonia, e, em muitos mitos, aparecia representado como um hipopótamo, animal cuja força e imprevisibilidade ameaçavam a ordem estabelecida. Em resposta a essa ameaça, o faraó, personificando Hórus, era visto como o guardião da ordem cósmica (Maat ou Ma’at) e, em rituais específicos, como o festival do “hipopótamo branco”, ele caçava e derrotava simbolicamente o animal. Aliás, encenações rituais dessa história foram registadas por volta de 100 a.C. nas paredes do templo de Edfu. Essas cenas mostram Hórus, frequentemente representado com o rei, arpoando Seth na forma de um hipopótamo.
São amplamente representadas em cenas de tumbas e templos imagens nas quais os reis, portando lanças, são mostrados em confronto direto com os animais nas águas do Nilo, que serviam não apenas para ilustrar a coragem e a capacidade do faraó em proteger o Egito, mas também reforçaram o papel do monarca como o herói divino que mantém a harmonia universal.
O impacto real e simbólico dos hipopótamos no Antigo Egito pode estar da mesma maneira associado a lendas que sugerem que Narmer (n’r-mr), considerado o unificador das regiões do Alto e do Baixo Egito, e, portanto, o primeiro faraó do Egito unificado, teria sido uma das suas vítimas. Apesar de não haver comprovação arqueológica concreta, há no entanto menções históricas de que Narmer teria sido morto por um hipopótamo enquanto nadava no Nilo. Se isso de facto ocorreu, tal incidente apenas reforçaria a percepção da letalidade desses animais e a sua associação com o caos, tornando a morte de um grande líder como Narmer.
Contudo, os antigos egípcios também reconheciam os hipopótamos como criaturas positivas. Estes habitavam no rio Nilo, a fonte da vida, e por conseguinte estavam associados à criação. Mergulhavam frequentemente na água por vários minutos, subiam à superfície para respirar, e depois afundavam novamente, facto que os antigos egípcios associavam à regeneração e ao renascimento.
Outro comportamento intrigante dos hipopótamos é que eles rugem pela manhã, ao nascer do sol, e à noite, ao pôr do sol. Os egípcios possivelmente interpretavam esse procedimento como uma saudação e um adeus ao sol. E a viagem do sol era vista como um eterno ciclo de renascimento do qual os mortos esperavam participar. Os hipopótamos estavam, portanto, associados à vida, regeneração e renascimento. Representações destes animais, como estatuetas ou sob a forma de pequenos selos e amuletos, poderiam consequentemente transferir essas qualidades para os seus proprietários.
Por outro lado, os antigos egípcios observaram igualmente que os hipopótamos fêmeas protegiam ferozmente as suas crias. O perigoso, porém protetor aspecto dos hipopótamos, seria provavelmente uma das razões pelas quais Taweret, protetora das mulheres em parto e fertilidade e uma das primeiras deusas apotropaicas reconhecidas, havendo inúmeros amuletos produzidos com sua imagem, sobretudo provenientes do Antigo Egito, Amarna, era representada como parte hipopótamo. Outras deusas hipopótamos semelhantes, reconhecidas como divindades egípcias, foram Ipet e Reret.
Estatuetas de divindades em forma de hipopótamos, c. 332–30 a.C. ▪ Metmuseum
Infelizmente extinta no Egito atual, a população de hipopótamos não era apenas temida pelo seu poder destrutivo, mas figuras profundamente enraizadas no pensamento religioso e simbólico da sociedade egípcia, vinculando o poder do faraó à luta eterna pela manutenção da ordem cósmica.