POEMAS DO LIVRO “Manual de Estilhaçar Vidraças” (Editora COUSA – 2022) MANUAL PARA FAZER BOLA DE GOMA DE MASCAR A goma...

O Estalo da Palavra (XXVI)

poesia espirito-santense capixaba jorge elias neto

POEMAS DO LIVRO “Manual de Estilhaçar Vidraças”
(Editora COUSA – 2022)




MANUAL PARA FAZER BOLA DE GOMA DE MASCAR
A goma é urbana — ruminância humana.
Observar os preceitos do bom uso dos dentes, da forma de mascar, de sorver a abundância da saliva, remoer na mandíbula e repousar sobre a língua. (Dissimulada leveza do Ser de vícios.) Artificialidade do gosto ̶ subterfúgio ̶ do que é falso e não mascavo, borracha e não morango. Remexer, revirar, mastigar o que não é hóstia, aguardar o porvir do nada, do sem gosto, da palidez real da hipocrisia. Contorcer sobre as papilas a massa amorfa ̶ corrompê-la. Pressionando no céu da boca o que não é estrela. Espalhar a massa, fazê-la translúcida. (Apropriar-se da sacrossanta trindade ̶ palato, dentes e língua.) Cingir os lábios, usar do fole, de soprar velas, dar suspiros. Trazer do tórax o ar quente por estreitos caminhos ̶ forjar destinos. Dissecar a lâmina, arremeter em fuga o balão menino. Expandir a liberdade, testemunhar o baque, o estouro, a impossibilidade do voo. Sentir tombar sobre a boca os restos, as sobras, o restolho do sopro ̶ a felicidade.


MANUAL ANTI-INSÔNIA PARA O VIGIA NOTURNO DE CEMITÉRIO
Será pisar em terra plana, rescaldo de festa e drama ou solo santo, recanto de relicários e pranto? Ao longe serão almas dispersas ou fogo fátuo, combustão de gás metano? Quem sabe o boitatá e seu brilho de corpo inteiro, encarnação da alma penada no portilhão da entrada? (Como se chega ̶ contrito ou hirto ̶ diz do assombro ou arrebatamento?) Postar-se no portal, bater o ponto, medir a noite de canto a canto, relembrar que o inominável reveste os ataúdes, passeia nas alamedas ̶ espia o crédulo. O pé ante pé entre os túmulos. Noite de extravios, reino oculto do além-trevas. (A noite decide o nome de seus filhos.) O espasmo, o eco do grito mordaz corrompendo o silêncio. Gatos pardacentos ̶ anjos dispersos, som, uivo, vento, o mais do nada, uma celebração. (No escuro se fala às surdinas.) Seja a marmórea desgraça ou o abençoado descanso, os mausoléus só existem para os vivos. Buraco de gente encoberta, escassez de ternura. (Os corpos semeados em jazigos também são obras do acaso e se igualam em sua substância última ̶ não carregam nas moléculas partículas de soberba.) Enfim entender, e vestir-se de humanidade.


MANUAL PARA UM REPENTISTA DAS FACAS
Meu punhal tem duas faces: a que brota e a que geme. E se fico descontente com o desatino do nada, enfio de bucho adentro a lâmina ̶ minha enteada ̶ de face brilhante e Inteira, nos intestinos do cabra essa miragem da gente espelho que se fez máscara. Meu punhal tem duas faces: a que brota e a que geme. E este, que sou eu mesmo, no delírio do instante, me enrosco na peixeira, me aperto e estrebucho; rogo apelo ao Satanás com cara desesperada, rogo apelo à Virgem Altíssima, Mãe do nosso Salvador, que perdoe a impertinência deste imbecil pecador. Meu punhal tem duas faces; a que brota e a que geme. Se a verdade de quem teme é ser caveira no túmulo, me remexo, avexado, cruz em credo, desconjuro, deixo o tinhoso de lado me apego com o divino, pois ser temente a Deus é melhor que ser defunto. Meu punhal tem duas faces: a que brota e a que geme. Arranco do ventre o aço. De um trago bebo a maldita do rasgo entorna o sangue nas ventas, lágrima pinga. A dor já não atormenta. Cana boa me ilumina. Tampo o rombo com fumo bravo, e o corpo todo treme. Meu punhal tem duas faces: a que brota e a que geme. A ferrugem do arado que recortou minha carne despejou pimenta ardida que semeou meu destino. Fiz que fiz minhas tontices brotou em mim vil martírio: me apequenar na vaidade leme de tolos fascínios. Meu punhal tem duas faces: a que brota e a que geme. O que corta, brota e fere e tempera corpo e mente não é fome desatada: é gana que se ata à gente. É comprar o que é nada grilhão de osso e corrente que se aferra ̶ a ingrata ̶ nos miolos deste demente. Meu punhal tem duas faces: a que brota e a que geme. Se me retiro, é desgosto do mais que fiz nestes campos; renego o que me é devido, só cumpro com este canto. O som com que me despeço é cortante e sincopado. Segue os caminhos das veias, vem do rincão do pecado. Na pele, deixei o repente. Posso partir finalmente. Meu punhal tem duas faces: a que brota e a que geme.


MANUAL DE QUIROMANCIA DE BOTECO
Por mais que se imiscuísse e se intitulasse sóbrio, a ferrugem da mesa, a cerveja, as coisas pensas eram óbvias. Mormente o enredo fluente, o discurso de grandeza, algo escapava: uma urgência premente, angústia de unhas roídas, desgosto na fala empastada, ruidosa. A fúria no gargalo, a inquietação das pernas, o desmedido das horas, o olhar de espera, nostálgico e umedecido, disperso no ermo da rua. (A linha interrompida é razão pura.) E mais um traçado, um rabo de galo, um conhaque nesse desapego ao correr da noite, na vala do dia.

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