Para meu pai
Há vinte anos morreu o meu pai, Manoel, botafoguense de boa cepa.
Com meu velho aprendi que ser botafoguense é um estado de espírito. É um não precisar se envolver com as miudezas da patuleia.
Botafoguense não anda: paira. Até ontem, estávamos cada vez mais etéreos. Os adversários nos provocavam, dizendo que andávamos minguados e minguantes. Que nosso fim estava próximo. Enganaram-se, claro. Voltamos e calamos todo mundo, porque ninguém cala o amor - especialmente esse amor. Somos raros mesmo. Aliás, raríssimos. Uns resistentes. Até o renascimento do glorioso, torcer para o Botafogo era como pertencer à família real britânica ou ao grupo dos que leem sânscrito: um círculo restrito e qualificado, que havia se tornado um tanto vintage mas ostentando um passado histórico do qual se orgulhava.
Ser botafoguense é como tornar-se expert em chá. Você faz bonito até se for convidado pelo rei Charles para debater a expansão do esporte bretão nos trópicos. Note que não estou falando dessas tisanas que o brasileiro apelida de chá. Boldo, camomila e hortelã? Não mesmo. Refiro-me a nobre domínio dos chás pretos, verdes, oolongs e brancos. Servidos sem açúcar, com cerimônia e porcelana chinesa, temperatura certa e tempo de infusão cronometrado. Um luxo.
Somos uns apolíticos em preto e branco. Se você ouvir falar de botafoguenses envolvidos em confusão, saiba que são infiltrados: os black-blocks do futebol são os outros.
A paixão de meu pai pelo Botafogo iniciou na infância (ou será que foi na juventude?) dele num Rio de Janeiro hoje quase desaparecido, o Rio dos anos 50, que encantou Walt Disney e Hollywood. Um Rio cuja fama resiste aos percalços e aos maus governantes. Papai morava em São Cristóvão e cultivava duas paixões: música e futebol.
Se na música era polígamo, no futebol e no casamento sempre foi monogâmico. Até hoje guardo a canequinha alvinegra em que tomava a cerveja geladíssima. Está descascada, mas firme. E na minha estante - diante da foto dele - há um panda botafoguense cujos braços abertos parecem hoje celebrar, em nome do meu pai, a conquista da Libertadores.
Às vezes imagino que meu pai talvez alimentasse secretamente algum desejo de imitar seus ídolos. Quem sabe sonhasse em ser o Heleno, rei das mulheres, dos campos e da cocada preta. Ou dividir a invenção da folha seca com o Didi. Ou talvez quisesse apenas ser Amarildo, Zagallo, Manga, Paulo Cezar Caju e Gerson, ou vestir a camisa 7 para absorver a irreverência do Túlio Maravilha. Jamais saberei.
O que sei é que, para mim, meu velho sempre foi Garrincha, gênio humilde de pernas tortas e um talento imenso para o encantamento coletivo. Hipnótico.
Filha apaixonada é um problema. Raramente supera o amor pelo pai. E o meu velho – saibam todos - era o meu xodó. Por ele fiz a maior loucura da minha carreira jornalística: especialista em política e em arte (eu sei, eu sei) me candidatei a fazer uma entrevista de página inteira para a editoria de Esportes. A razão do desafio? O entrevistado era o Nilton Santos. Em Brasília, tremi nas bases ao me ver diante da Enciclopédia do Futebol. Um monumento! Não resisti. Foi a primeira e única vez que pedi foto com um entrevistado. Para tudo tem limite, até para a minha timidez. Papai ficou tão nervoso que não conseguiu me acompanhar à gravação. Eu deveria tê-lo obrigado.
Por isso, quando penso no Botafogo hoje coberto de glórias, solto a imaginação e tudo misturo: meu pai, suas paixões e o cenário em que viveu. Assim, às vezes, o meu botafoguense particular assume a forma de um playboy com bigode à Clark Gable, cabelo gomalinado e óculos escuros, que desce de um conversível na frente do Copacabana Palace. Carrega como um troféu seu charme e dignidade. Uma beleza antiga, que abre portas de carros para as damas.
Eu, se exagerada fosse, diria que nós, os botafoguenses, somos a nata, a fina flor do Rio de Janeiro. No samba, seríamos mistura de Noel, Ataulfo, Cartola e Paulinho da Viola. Já entre os bossanovistas, João Gilberto e Tom Jobim, por certo. Dos cronistas, João do Rio e Paulo Mendes Campos. Entre as escritoras, Hilda Hilst, incompreendida por muito tempo e então redescoberta como uma das maiores autoras brasileiras. E se for nos comparar a mulheres apaixonantes, somos estrela de cinema com doutorado em astrofísica.
A alegria em Buenos Aires tem hoje um sabor extra: ele desmente ninguém menos que o maior cronista esportivo brasileiro - Nelson Rodrigues. Mais de meio século depois, podemos encher o peito e dizer: você estava errado, Nelson. Não somos pessimistas. Botafogo é a alegria impressa no rosto de meu irmão e meus sobrinhos, é vitória e é a reescrita da vida por um homem cujo sobrenome inclui a palavra "texto". Hoje, meu sobrinho Henrique chorou, mas de pura felicidade.
Mas não sou exagerada. Por isso acho que é hora de terminar esta crônica - e dizendo que o meu Botafogo idealizado é o Glorioso de tantas histórias e tradições, mas também é o meu velho pai, de mil saudades.
Ninguém cala esse amor por ele(s). Nem o choro que persiste em mim há vinte longos anos. Porque naquela mesa está faltando ele, e a saudade dele sempre vai doer em mim.
Brilha aí no céu, meu velho, solitária estrela.
E dá um abraço apertado no Garrincha e no Nilton Santos.