O mais recente livro de poemas de Alexei Bueno, Naquele remoto agora (Rio, Anadiômene, 2024), circunscreve-se na busca da apreensão dos instantes. Diversos os instantes, diversas as formas de dizê-los e as fôrmas para apreendê-los.
Variados, os instantes se apresentam, mas guardando em si uma substância única de um certo gosto de perda, de cansaço, de derrota, de frustração, que se foram acumulando, desde os tempos mais remotos, e que se cristalizaram num agora, formando o belíssimo oxímoro que dá título ao livro, oriundo do poema que o abre, em perfeitas quadras heptassilábicas:
Naquele remoto agora
Naquele remoto agora Há um vulto que, rente ao muro, Consulta, abstraído, a hora. De quando era o seu futuro? Naquele agora remoto A folha até hoje espera A brisa que a atire ao esgoto, Mas nada em torno se altera. Remoto agora, naquele Lapso eu era e sou eu. Brilhava na minha pele O sempre o mesmo outro céu.
Tudo no poema aponta para a distância, do dêitico ao adjetivo, compondo a surpresa do leitor, com o advérbio substantivado, presentificando-a e atualizando-a na incompletude de um tempo que escoa, contínuo, parente do “aqui é distante” (Então). Como procurar um título para este ensaio, incompleto no que deseja dizer, por não poder absorver, na sua totalidade, a expressão poética, e permanece impotente diante do inefável? Julguei que não poderia haver título melhor do que o próprio título do livro, por apanhar e reter o leitor na malha do indizível, porém sensível, que só a verdadeira póiesis é capaz de trazer, jogando-o na pura estesia.Naquele remoto agora Há um vulto que, rente ao muro, Consulta, abstraído, a hora. De quando era o seu futuro? Naquele agora remoto A folha até hoje espera A brisa que a atire ao esgoto, Mas nada em torno se altera. Remoto agora, naquele Lapso eu era e sou eu. Brilhava na minha pele O sempre o mesmo outro céu.
A Poesia, com P maiúsculo e sem adjetivação, não pede para ser lida; ela não faz a concessão de humilhar-se; ela vem, se insinua, se instala, se entranha e nos impregna. A partir daí, impondo-se, torna-se imperioso lê-la, senti-la, fruí-la. Escrever sobre ela é, então, mera consequência daquilo que nos invadiu e nos fez refém ab aeternum ad aeternum...
Diga-se, contudo, que um dos recursos que consolidam a beleza dos poemas de Naquele remoto agora é fazer com que nada, absolutamente nada, soe com um acento de desespero. Há, antes, desilusão, desengano, frustração, sentimentos balizados pela sobriedade que tolhe um ímpeto ancestral ou juvenil vencido. Há dor? Há. Há saudade? Sim. Há perdas? Muitas! Mas não há desespero. A poesia de Alexei Bueno flui com a serenidade e com a naturalidade espontânea que se encontram nas formas fixas ali presentes, do soneto à terza-rima, da quadra ao dístico, do heptassílabo ao decassílabo, puro ou combinado. Em nenhum momento o leitor é importunado pela presença dos andaimes na construção desse templo de devoção. É a supremacia da poesia, numa construção de quem a domina, mas sem jamais mostrar-se artificial, pedante ou fátuo.
Já confessei não ser leitor da poesia contemporânea. Tornei-me, contudo, leitor de Alexei Bueno, por constatar o que muitos não querem ver: a tradição, a tão mal afamada tradição, sempre teve o seu sabor de modernidade. Criando seus poemas e recriando a tradição, Alexei Bueno deixa à mostra o que a poesia foi, é e sempre será, um misto de transcendência e inefabilidade, pouco importando que a aparente capa de prosaísmo vista os seus versos. É, em outras palavras, a poesia amadurecida, frente a uma visão da vida que, à nossa revelia, diz mais não do que sim, conforme se encontra no poema “Nudez (destaque-se aqui o eco sutil de Cecília Meireles, em “Fala inicial”, poema que abre o Romanceiro da Inconfidência):
Ficaste só com o poema.
Ele e a tua solidão
Se fitam, alçam-se a tema.
É a disposição extrema
Frente aos sorrisos do não.
Do que já não te despiste
Por certo de despirão.
Veste-te com o que resiste.
O poema, só ele insiste
Ao ver que as coisas se vão.
No fim um único ente,
Nem veste mais, união
Total, restará, presente.
Mira, com o olhar displicente,
O vento às voltas com o chão.
O autor fez questão de datar todos os poemas. Todos são simbolicamente datados, num período que vai do dia 02 de setembro ao dia 12 de novembro de 2024. Não consigo desvincular essa datação insistente de um movimento que vai do renascer para o amadurecimento (a primavera e o seu auge, à espera da madureza do verão), em que tudo aponta para um instante que não é mais este agora, mas aquele então que se perdeu. Na captação do instante, a descrição, mais do que a narração enquadra o leitor num ambiente físico ou psíquico, num “então que não me solta”, como diz o eu-poético (Os sem-morte); numa “prisão do agora” (Rebelião), ondeSó tu, instante, brotas.
Dos demais conjuntos,
Desde eras remotas... (Constatação)
É o processo lento de construção de um impulso que levou ao nada (A queda), o resultado de uma vivência de que sobrou apenas o nada: “formas... Tontas de tantos nadas” (Às compras); “Vai, barco alado,/Prenhe do nada!” (Cantiga extrema); “E a luz candente os dissolveu no nada” (Iluminação); “Nossa vida são duas, uma é o avesso/Da outra, formada pelo que não foi” (O desastre); “as formas adoradas... /germinam, pois não as salvamos,/Num sol de nadas” (Saldo); “É isto, um olhar, e as mutações do nada” (Esboço); “E o povo ri, e nada volta ao nada” (Viagem)...Dentre os tantos poemas, além dos já referidos, gostaria de destacar outros quatro: Passatempo, Pantheon, Reverberação e Heresia. No primeiro, Passatempo, vê-se o instante cravado num tempo que já está próximo de seu escoamento total, marcando “os muitos réus de uma só pena”, como se encontra em O maior espetáculo da Terra. São velhos, cuja vida, como o jogo de cartas a que se entregam, se esvai, tal qual o momento em que “o sol poente se avermelha”, numa das quadras mais perfeitas, que já li sobre a morte, em que a ambiguidade do título revela a vida como um breve instante, um passar do tempo, antes de morrer:
Jogam porque seus jogos já estão feitos.
Não há mais lances. Consumou-se a sorte.
Um embaralha, um outro faz o corte.
Nada perturba o seu balé perfeito.
No segundo, Pantheon, a ironia, que nunca falta a “Os sem-hoje, os presos no ontem” (Alternância), transforma a sordidez da vida na imortalidade sem glórias, que a indignidade da degradação humana proporciona:A foice tão ferina
Aos grandes deste mundo
Te eleva, vagabundo,
A um deus, em cada esquina.
Os outros dois poemas, Reverberação e Heresia, traduzem momentos em que o lirismo se acentua, revelando dois instantes diferentes. Um, mais remoto, da época de criança; outro, mais próximo, da época de adulto. São duas cenas que transformam uma banalidade – o refresco de groselha com biscoitos Maria – e o “primeiro alumbramento”, na troca de roupa da amada, expondo o seu corpo nu, em momentos únicos, perdidos, fixando o eu-poético “naquele remoto agora”. Um reverbera no outro, nos prazeres diferenciados que vêm à tona: na criança, o momento do esplendor; no adulto, a visão do sublime. O ciclo se fecha e o saldo, se saldo existe, é a perda. Vale a pena transcrevê-los:Reverberação
O copo com o refresco de groselha. Os Biscoitos Maria. Já nos fins Do crepúsculo o voo dos cupins. Só fiquei eu daquela tarde velha. Guardo-a, intacta, e não há nenhum valor Naquelas horas vãs, hoje sagradas. Só mesmo o acúmulo de tantos nadas Faz que um nada se vista de esplendor.
O copo com o refresco de groselha. Os Biscoitos Maria. Já nos fins Do crepúsculo o voo dos cupins. Só fiquei eu daquela tarde velha. Guardo-a, intacta, e não há nenhum valor Naquelas horas vãs, hoje sagradas. Só mesmo o acúmulo de tantos nadas Faz que um nada se vista de esplendor.
Heresia
No cemitério da Cidade dos Barões Tiraste a roupa – era verão, ninguém por perto – Para pôr outra menos quente. O sol, por certo, Nunca ali viu tamanha glória, entre os brasões. Por serem sacras as estátuas não sentiram A justa inveja. Foi atrás de uma capela. Visão sublime. Ah, não poder voltar a ela, Àquela tarde, e ao que os jacentes jamais viram.
No cemitério da Cidade dos Barões Tiraste a roupa – era verão, ninguém por perto – Para pôr outra menos quente. O sol, por certo, Nunca ali viu tamanha glória, entre os brasões. Por serem sacras as estátuas não sentiram A justa inveja. Foi atrás de uma capela. Visão sublime. Ah, não poder voltar a ela, Àquela tarde, e ao que os jacentes jamais viram.
Os que me leem me conhecem e sabem que renunciei à crítica formal, deixando-me levar pelo prazer que o texto me desperta. Para a crítica, que vive das pontuações acadêmicas, isto pode parecer um absurdo. Não me incomodo. Literatura é, antes de qualquer imposição, a liberdade de falar daquilo que nos toca profundamente. Quando, assim, o fazemos, parece que, enfim, nos encontramos e ganhamos de volta o tempo perdido na aridez da esterilidade crítica. Por isto este ensaio escrito na emoção da leitura desse belíssimo livro de Alexei Bueno, ensaio que concluo citando a última quadra do poema O Encontro:
Há como algo, no entanto, se perder?
No coração do absurdo tudo pulsa.
Só nos convida o que antes nos expulsa,
Até sermos, talvez, o mesmo ser.