Meu pai gostava de comprar livros. Mas, não necessariamente de ler. Comprava, acredito, porque certamente não resistia aos insistentes apelos dos vendedores de livros. Então, a estante da sala estava repleta de coleções.
E, assim, havia ali a Enciclopédia Barsa, com uma Bíblia em edição de luxo, capa de couro, arabescos em ouro, rodapé com explicações. Um primor e uma leitura que tanto iria me ocupar anos depois, com verdadeiro fascínio literário.
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Também estava ali a coleção do maranhense Humberto de Campos, que me pareceu muito desinteressante, à exceção dos seus causos. E ainda José de Alencar com O Guarani, Iracema, o Tronco do Ipê. Tinha então a impressão que ler Alencar era como estar à sombra de uma imensa e frondosa árvore.
E, claro, lá estava ele também: Machado de Assis. E como, nos meus, sei lá, dez ou onze anos, detestei Dom Casmurro! Eu tinha folheado o livro aleatoriamente, talvez por estar na parte mais baixa da estante. Só lembro que não gostei, e logo o abandonei.
Diante do escárnio que padeci, a professora veio até mim e perguntou porque eu tinha mentido. Eu disse que realmente tinha lido Dom Casmurro… mas, só as primeiras páginas e tinha detestado. Ela então respondeu: “Tente outro livro. Quem sabe não irá gostar. Sugiro o livro Meu Pé de Laranja Lima.
Então, a magia se fez. Dias depois, quando meu pai me trouxe o livro e comecei a ler, não consegui mais parar. Foi uma leitura febril. Nele, viajei, sofri, chorei, ri e então descobri que se havia um outro caminho para entender o mundo, essa senda estava na literatura. Então, li quase tudo de José Mauro de Vasconcelos.
Anos depois, já estudando no Colégio Estadual da Prata, o Gigantão, eu terminei por descobrir não apenas Jorge Amado e Érico Veríssimo, mas também os caras: Platão, Sócrates, Aristóteles, Diógenes. Era uma sensação de descoberta, mas também de desencanto… Desencanto por imaginar que jamais seria como eles.
Vida que segue, vieram Hesse (Sidarta foi imprescindível em minha adolescência), Thomas Mann (ah, Montanha Mágica), Dostoiévski, que foi como um soco no estômago. Então, recorri aos poetas em busca de algum alívio. E fui logo descobrir
Veio, então, um episódio também marcante. Já na universidade, acho que me apaixonei por uma boliviana, que me emprestou um livro de um escritor russo. Naquele tempo, eu fazia parte de uma célula meio clandestina, que lia às escondidas, em salas remotas do Campus II da UFPB, O Capital de Marx, o Manifesto Comunista e escritores como Máximo Gorki e Gogol.
Então, levei meu entusiasmo com o tal livro para a nossa próxima reunião de leitura. O líder, vamos chamar de André, perguntou que livro tinha causado tanto deslumbramento. Eu: Pavilhão dos Cancerosos. Ele: “Não pode”. Eu: “Por que não pode?” Ele, com raiva, fechando o pulso: “É de um escritor contrarrevolucionário, se vendeu aos Ianques! Não pode!”
O efeito foi contrário. Dias depois, procurei o avexado professor Gaspar para saber sobre o tal Alexander Soljenítsin, porque eu simplesmente não tinha conseguido parar de ler até encerrar o Pavilhão. Gaspar abriu aquele seu riso meio bonachão, um anarquista: “Ele é um portento, com um livro abalou o império soviético. Você não conhece? O Arquipélago Gulag”. Que li, com espanto, anos depois.
Fonte: Wikimedia
Imagens: Wikimedia
O mesmo posso dizer de Gabriel Garcia Marquez. Um cara iluminado. E tive essa percepção, quando estive em sua casa da Cartagena, de frente para o Pacífico e toda a mitologia que ainda hoje dança em torno de sua obra. Seria preciso mais cem anos, nem que fosse de solidão, para compreender sua genialidade em toda sua extensão. Como faria um certo Jorge Luis Borges.
E quando volto meus olhos para o passado de tantas leituras, percebo como, cada uma a seu modo, determinou um rumo em minha vida. Para o bem e para o mal. Acho que sou o quântico dessas leituras, que não apenas se somam, mas se entrelaçam para formar essa nebulosa em que me constituí.
MS
Do livro Uma Ideia nas entrelinhas, nos 35 anos da Editora Ideia.