Apesar de a melancolia ser um traço importante da alma brasileira, poucos são os livros que entre nós procuram interpretá-la. As publicações sobre o tema inserem-se, grosso modo, em domínios específicos como o da psiquiatria ou da psicanálise, abordando o sentimento melancólico numa perspectiva nosográfica ou clínica. Faltam entre nós obras que, a exemplo do que fez Eduardo Lourenço com a saudade portuguesa, analise e interprete a melancolia
como um ingrediente da nossa personalidade ou, melhor dizendo, do nosso espírito.
Grandes livros que tratam da formação do homem brasileiro – como Retrato do Brasil, de Paulo Prado; ou Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda – destacam a tristeza que desde o início, com o processo colonizador, vinca a nossa sensibilidade. Somos, segundo Paulo Prado, o produto de três raças tristes, duas das quais oriundas de lugares distantes, que se sentiram exiladas na nova terra. Essa mistura teria concorrido para a cordialidade, que segundo o autor de Raízes do Brasil seria o traço mais saliente do nosso caráter (cordialidade no sentido de agir mais com o coração do que com o cérebro). A despeito da contribuição dos referidos estudiosos, à qual se poderia acrescentar o ponto de vista de Gilberto Freyre em livros como Casa Grande e Senzala, pouco se tratou da melancolia brasileira por um prisma histórico ou estético-antropológico, dimensões em que melhor se poderia avaliar o homem do Brasil.
É sobretudo por essa míngua de bons livros sobre o assunto que se lê com entusiasmo Saturno nos trópicos: a melancolia europeia chega ao Brasil, de Moacyr Scliar. Publicado pela Companhia das Letras, esse trabalho é primeiro que tudo um repositório variado e criterioso de informações sobre as características e o histórico da melancolia. Nele se discute tanto a teoria de Hipócrates, que atribui esse quadro patológico ao excesso da chamada bile negra (melas khole), quanto as ideias de Freud, que liga a melancolia ao luto e considera-a como efeito de uma perda objetal (ou melhor, de um luto de si mesmo). Com profusão de citações e num estilo ágil e enxuto, mais de jornalista que de scholar, Scliar traça um roteiro cujo propósito é mostrar como a melancolia chegou do Velho mundo ao nosso país.
Segundo o autor, há uma estreita relação entre a entrada da Peste Negra na Europa (1347) e o aparecimento de A anatomia da melancolia, de Robert Burton. Publicado em 1621, esse livro fez um estrondoso sucesso e pareceu refletir o clima de contágio e doença propiciado pela Peste. O ponto de partida de Scliar é que a publicação do livro de Burton podia ser “a ponta de um iceberg emocional, o reflexo de uma conjuntura psicológica e filosófica” (p. 9) que se reproduziria em outros momentos históricos. Como, por exemplo, quando da chegada, em 1849, de um navio americano em Salvador. Procedente de New Orleans, ele trouxe para o Brasil um novo surto de febre amarela. O equivalente do livro de Burton nesse novo contexto teria sido o livro de Paulo Prado, que trata da essencial tristeza do brasileiro e, como o outro, obteve enorme sucesso.
Para apreciar as qualidades do livro de Scliar, não é preciso que se concorde com essa versão da lei do “eterno retorno”. O importante aqui não é a tese, mas os desdobramentos que ela propicia em termos de uma instigante e arguta caracterização do sentimento melancólico entre nós. Enfocando nossos hábitos, nossa política, nossas doenças, o autor concebe a melancolia brasileira como uma patologia social. Antes de ser um problema do indivíduo – conforme ilustram as ensimesmadas representações da arte romântica –, ela é uma questão, digamos, de saúde pública. E pede não tanto Prozac quanto uma política socialmente mais justa. Somos tristes devido não ao tédio ou à saturação, como acontece com os europeus, e sim aos enormes contrastes que, desde os primórdios da nossa história, marcaram-nos a individualidade.
Para confirmar isso, Scliar não apenas expõe e comenta muitos dos nossos hábitos, características, suscetibilidades, como se detém em alguns de nossos mais importantes textos literários. Nesse ponto o antropólogo dá lugar ao intérprete de obras como Triste fim de Policarpo Quaresma e O alienista, nas quais vê com penetração o enlace entre melancolia e mania. A polaridade entre esses estados, tipificada no que a psiquiatria rotula de “psicose maníaco-depressiva”, parece confirmar que eles compõem uma patologia só.
Scliar demonstra que tanto Quaresma quanto Simão Bacamarte, personagem de O alienista, têm em suas obsessões um contraponto de tristeza. Simão procura ilhar-se em seu saber. Antes de ser uma caricatura do pedantismo científico, é um reflexo de nossa cultura sem referências, continuamente voltada para a última novidade do estrangeiro. Já Quaresma, com a sua obsessão nacionalista e falta de senso prático, traduz a ingenuidade e a alienação com que tantos de nós encaram nossa realidade social e política.
Um dos grandes méritos de Saturno nos trópicos é conceber a polaridade melancolia/mania como um referencial, uma categoria operativa, para se pensar o homem e a sociedade brasileira. Ao confrontar a melancolia nos trópicos com o seu equivalente europeu, destacando o que há de comum e de diferente nessas manifestações do “humor negro”, ele ao mesmo tempo aponta a continuidade que nos faz herdeiros de Belerofonte – uma espécie de pai dos melancólicos ocidentais – e mostra o que nos peculiariza em face do Velho Mundo.
Segundo Julia Kristeva, em Sol negro, a melancolia se acentua em momentos de dificuldades econômicas. Exacerba-se nas situações de crise social. Sendo assim, é preciso pensá-la não apenas como o efeito da privação ideal e mítica de um objeto. Inúmeras perdas menores, e mais concretas, podem desencadeá-la. O livro de Scliar alude a alguns elementos históricos, factuais, que podem fazer a alma mergulhar nesse abismo negro. Ou nesse lago escuro onde Narciso, com razão, evita se contemplar. Pois nos trópicos o seu rosto exibe a feiúra endêmica da miséria.