O termo “goliardo” deriva de Golias, pois, conforme o relato bíblico, até ser morto por Davi esse gigante era um modelo de inimigo da fé cristã. Em razão disso os oponentes da Igreja passaram a ser conhecidos como pertencentes à “família de Golias” e, portanto, rotulados de goliardos.
Abelardo e HeloísaC. Durupt, 1837
Em Carmina Burana, Maurice van Woensel apresenta a seleção e tradução de 39 canções desses clérigos, entre elas as 23 que foram musicadas por Carl Orff e se tornaram bastante populares entre nós. Segundo o tradutor, “essas canções, escritas e cantadas quase totalmente em latim, receberam suas melhores traduções em inglês e em alemão, línguas não latinas. Portanto, eis aí mais uma razão para ousar traduzir numa língua neolatina – o nosso português.”
O trabalho de Maurice é um monumento de erudição e inventividade. Fui um dos primeiros que tiveram contato com as traduções, das quais fiz a revisão em português. E desde logo me surpreendi com a ousadia daqueles rapazes, que cantavam o amor sensual com satânica volúpia e criticavam entre goles de vinho a hipocrisia e os interesses materiais do clero – este, sim, verdadeiramente um “baixo clero”. Maurice buscou ao máximo preservar o tom crítico e jocoso das versões originais.
Carmina Burana - Canções de Beuern ▪ Tradução de Maurice van Woensel ▪ Ars Poetica, 1994.
O percurso de Maurice lembra o de um goliardo moderno, um vagante lapidado pelas conveniências e restrições da modernidade. Ele deixou cedo a Bélgica, onde nasceu, e veio ser vigário em Santa Rita. Lá foi missionário participante, imbuído da ideologia progressista da Igreja. Depois rompeu com tudo isso e largou a batina para se casar.
Quem ler os versos de Carmina Burana se espantará com a atualidade da crítica aos (maus) costumes da época – tão parecida com os dias de hoje. Já naquele tempo havia, por exemplo, corrupção no Judiciário: “Quando é a grana que impera/ o direito degenera./ Ao indigente é negado/ o direito comprovado;/ para o rico não falta juiz/ a vender-se por pratas vis;/ para o rico, o juiz bonzinho/ sempre dá algum jeitinho”. E a juventude, tal como hoje, não gostava de estudar: “Nos tempos bons de outrora/ se estudava a toda hora;/ aos noventa, tão somente,/ aposentavam um discente./ Mas agora,
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Além de criticar os venais e os preguiçosos, os goliardos cantavam o amor carnal em versos como estes, que dão uma medida da ousadia do seu lirismo erótico: “A lei do amor a todos obriga,/ amar é a injunção/ de Vênus...// aves sem cessar gorjeiam/ formando um coro mirim,/ virgens mil a todos franqueiam/ prazer e gozo sem fim.” Maurice faleceu em 2001. Lembrá-lo é para mim retornar aos tempos da universidade, onde desenvolvemos por quatro anos o projeto de pesquisa “Precursores medievais da poesia moderna”. Como parte das atividades vinculadas a esse projeto, apoiado pelo CNPq, publicamos livros e participamos de congressos internacionais. Foi um período de intensa produção intelectual, em que muito aprendi com ele.
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Em Maurice a dimensão do erudito não era menor do que a do homem, em que avultavam atributos como integridade, bondade e seriedade profissional. Com ele, amigo exemplar, recebi preciosas lições sobre a arte da convivência. Lições que jamais vou esquecer.