Circulou, há algum tempo, a notícia, aparentemente anedótica, de que havia um personagem sentimentalmente avesso. Nunca sabia manter-se em consonância com as conversas de que participava, substituindo, para contrariá-la, azuis por amarelos. Não era como as pessoas consideradas normais, que ponderam, discutem, trocam idéias, digamos, num espaço civilizado, onde são tratados assuntos polêmicos, mesmo palestras leves, flutuantes.
Quando chegava, quer numa roda em café, solenes salões de festas mais refinadas, quem conhecia sua fama em ser do contra, alisava orelhas ou bigodes, apontava com o indicador teso a aproximação do dissabor personificado. Aquele contestador patológico, se é que lhe adere tal termo, não padecia de qualquer mal que pudesse ser diagnosticado e debelado por rotulados eficazes produtos farmacêuticos ou papos privados em gabinetes. Alguém lhe sugeriu procurar um psiquiatra, um psicólogo, a fim de investigar essa particularidade comportamental estranha.
O maníaco avesso era de boa índole, cordato, incapaz de ofender um mosquito. Certo que tinha propensão, talvez genética, à megalomania. Puxava ao pai. Mas tal inclinação herdada era suprida pelos obesos proventos sacados, cada mês. Vestia terno completo a toda hora, de inverno a verão. Relógio de ouro, sapatos caros, gravata de alta linha italiana. Porém, ninguém tem nada a ver com seus usos e costumes. Considerava-se orador e, quantas vezes, começava a destilar o verbo aformoseado por figuras de retórica, estilo meio rococó, desatualizado. Reconheça-se sua verve amansada, em compasso de alegro para andante, como se lhe morasse na alma uma sinfônica invisível.
Todos o conheciam como um Alcides Carneiro revivido (nada de reencarnação, posto o nosso amigo haver sido contemporâneo do grande e inesquecível tribuno, aliás péssimo em coletar votos. Mas o estilo, com algumas variações, se assemelhava à entonação da voz daquele orador paraibano. Criava neologismos extravagantes, violentos, que arranhavam sempre a boa gramática e filologia. Inteligente leitor de obras primas e de primorosa cultura livresca. Sempre discordava, aqui, ali, do pensamento e escritos dos autores mais respeitados.
Não relaxava jamais de suas opiniões contrárias e tinha lá seus cacoetes como o de torcer o pescoço duro preso ao colarinho sempre bem engomado. O mais curioso e emblemático de seu procedimento avesso era o de chorar copiosamente, ao escutar uma piada, retendo a gargalhada normal que se transformava em pranto a molhar seu lenço ou rir sem se conter, ao participar de velório para a indignação justa da família e dos amigos do distinto extinto. Uma calamidade. Personalidade assim é merecedora de um estudo mais aprofundado pelos experts da área do comportamento humano. Todavia, o homem avesso deixou apenas a lembrança, que tentei dar vida no relato desta crônica. Quem conviveu com ele já não mais frequenta os cafés do Ponto Cem Réis.
Portanto, acredite quem quiser.