Os elementos significativos que fazem parte da rede de relações chamada língua se chamam formas. Formas livres são as que se podem pronunciar isoladamente, constituindo-se num enunciado completo, como livro, caneta, pasta. Formas presas são as que se associam às formas livres e não se podem pronunciar separadamente, como o {–s} final de livros, que significa “mais de um”, ou como as terminações verbais. Formas dependentes são os elementos átonos que dependem de outro vocábulo, mas não se prendem diretamente a ele, como
os pronomes pessoais átonos que podem pronunciar-se antes, depois ou no meio do verbo: eu te amo, amo-te, amar-te-ei.
As formas livres, presas ou dependentes se chamam também morfemas. Os morfemas são representados entre chaves. Assim, {-a} é o morfema do feminino. Os sufixos e os prefixos são morfemas, são formas presas. O que caracteriza o morfema, ainda que não possa ser pronunciado isoladamente, como o {–s} que marca o plural, é o fato de ele ser dotado de significação. Há línguas em que, além do prefixo (que se acrescenta no início de uma forma base) e do sufixo (que se acrescenta no fim de uma forma base), há o infixo, que se acrescenta no meio da palavra base. Na língua iana ou ianam (do grupo ianomâmi), por exemplo, o infixo {-ru-} indica plural: kuwi (curandeiro) – kuruwi (curandeiros). Em mísquito, língua indígena do Panamá, a noção de posse é indicada por infixos: napa (dente) — naipa (meu dente) — nampa (teu dente).
Chama-se vogal ou consoante de ligação o fonema que se acrescenta entre a forma base e o sufixo para facilitar a pronúncia. Se acrescentamos o sufixo {–eira} à forma base licor, temos licoreira. Se, no entanto, à palavra café acrescentarmos o sufixo {–eira}, teremos de pôr um /t/ antes: cafeteira. O /t/ não é um morfema, porque não tem significado, e sua função é apenas fônica. Da mesma forma, se acrescentarmos a forma cultura à forma café, teremos cafeicultura. A vogal /i/ neste caso tem apenas função de eufonia, não tem significação.
O dicionário Aurélio, no verbete próprio, define infixo adequadamente como um afixo (morfema) interno, mas exemplifica com as consoantes de ligação de chaleira e motorneiro. Ora, as consoantes de ligação (assim como as vogais de ligação) não podem ser infixos, porque não são morfemas, não têm significação. Felizmente, o Houaiss não endossa essa lição. Não existe infixo em português.
O Aurélio segue a metodologia antiga das gramáticas latinas de abonar verbetes com exemplos de escritores, como se o escritor tivesse que obedecer às regras gramaticais do dialeto prestigioso. Citar exemplos de escritores era uma atitude válida para o latim, porque não há maneira de saber como funcionava a sintaxe latina e o emprego de vocábulos latinos, a não ser consultando-se os textos de autores como Ovídio, Virgílio, César e Catullo, por exemplo, que também subvertiam a sintaxe, daí a multiplicidade de significados que os verbetes latinos têm nos dicionários específicos. A diferença é que o latim não muda, enquanto uma língua atual está sempre evoluindo. Mas esse método de citar escritores não funciona adequadamente quando se estuda uma língua viva, porque o objetivo de um escritor é sempre o de escrever diferentemente dos outros, numa linguagem conotativa, subvertendo a sintaxe, como atestam depoimentos conscientes de bons escritores, como Autran Dourado (Cf. O meu mestre imaginário. Rio de Janeiro: Record, 1982, p. 58-60) e até de bons gramáticos, como Celso Cunha (Ver: Uma política do idioma. Rio de Janeiro: São José, 1964, p. 19 e 22). Em outras palavras não se pode ter como norma a construção sintática de um autor que escreve numa língua viva.
É possível consultar textos não conotativos, não artísticos, para estudar a norma culta de uma língua viva. A norma culta portuguesa foi sedimentada pela linguagem jurídica, não pela linguagem literária. Eram os textos jurídicos que faziam as vezes de cartilhas de alfabetização (Cf. José Ariel Castro, no capítulo “Formação e desenvolvimento da língua nacional brasileira”, no vol. I da obra dirigida por Afrânio Coutinho. A literatura no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio/UFF, 1986, p. 272.)
Nossos primeiros gramáticos e ortógrafos, como Fernão de Oliveira e Duarte Nunes de Leão, não citavam seus contemporâneos de labor poético. Suas observações nasceram do convívio com as pessoas cultas da época. Assim, parece-me inadequado citar escritores para abonar regras ou o emprego de palavras e verbos.
Grammatica da Lingoagem Portuguesa, de Fernão de Oliveira, e Orthographia da Lingoa Portuguesa, de Duarte Nunes de Leão, obras publicadas em 1536 e 1576, respectivamente.
A regência de um verbo como responder, em Machado de Assis, pode opor-se à empregada por outro autor de mesma grandeza, como Carlos Drummond de Andrade. Assim, embora o Dicionário de verbos e regimes de Francisco Fernandes conste da bibliografia do Aurélio, pelo menos nas versões anteriores em papel, os exemplos do emprego de usufruir e deparar, de autoria de Nélida Piñon e de Clarice Lispector, respectivamente, em verbetes próprios, desrespeitam a regência prescrita por Francisco Fernandes e pelos bons gramáticos contemporâneos. Por essa razão é que o Aurélio abonou, contrariando sua própria informação de invariabilidade da palavra bege (s.v), um plural inexistente calcado num exemplo de uma escritora que não tem compromisso com a gramática normativa, mas com a própria arte.