Direito e Pós-Modernidade – Sinergia do patriarcado e violência contra a mulher. Eis o título da escritura oferecida à apreciação da coletividade por Josinaldo José Fernandes Malaquias.
O livro tem uma apresentação do advogado Ricardo Bezerra e um prefácio da professora de Direito Neide Miele, da Universidade Jules Verne, de Amiens, na França. Apesar disso, o estimado confrade da Academia Paraibana de Letras Jurídicas (APLJ) convocou-me para comentar a sua criteriosa investigação a respeito das causas da selvageria que ainda vitimiza as mulheres. Elevado ao centro do palco, esforçar-me-ei para não lhe deslustrar a deferência.
Desde que recebi a obra mantive-a perto de mim. Carreguei-a por vários dias no bolso do paletó. Sempre que me sobrou tempo, examinei o denso e lúcido conteúdo das 138 páginas publicadas pela Dialética Editora, situada em São Paulo. Explorei dessa forma o escrito fazendo anotações nos intervalos dos meus afazeres. Posso cumprir a missão que me foi confiada.
Josinaldo Malaquias fala do medo e da insegurança presente no espírito das pessoas do sexo feminino, nestes tempos em que assistimos o paulatino definhar dos mecanismos de proteção do Estado. São tempos de transformações rápidas e impressionantes. São tempos pós modernos. São tempos líquidos, como os definiu o filósofo polonês Zygmunt Bauman1.
Com efeito, ninguém desconhece a nossa vivência atualmente se processa numa sociedade aberta e, por consequência, sujeita a golpes inesperados do destino. Neste ambiente, o poder local não consegue se impor no espaço planetário e vai perdendo a capacidade de resolver os problemas existenciais dos súditos residentes em seu território. Tem-se, então, a ausência de controles, ficando inviável, em muitas situações, a atuação do Estado, para amparar os seus súditos. A omissão do poder público solapa os laços de solidariedade que moveram as pessoas para organizar a comunidade. A Soberania abre mão de seus deveres terceirizando as ações de sua competência. Sem saber a quem recorrer, os indivíduos se amedrontam, sentem-se inseguros, porque habitam um ambiente social carregado de incertezas e cada vez mais saturado de injustiças.
Malaquias concorda com os fundamentos da teoria baumaniana do desmonte dos mecanismos de proteção do Estado, especialmente em relação às pessoas mais frágeis. Porém, forma a sua própria opinião em relação à violência vitimizadora das mulheres. Parte, então, para arrumar o seu estudo, separando-o em partes e anunciando as suas conclusões.
No primeiro capítulo, fala da ênfase conferida pela Ciência Jurídica da pós modernidade aos direitos humanos e à organização democrática do poder. No segundo segmento, aponta a cidadania e a igualdade entre homens e mulheres como valores assegurados na Constituição e nas leis, com o objetivo de garantir a dignidade de todos. No terceiro momento, esclarece que a boa qualidade das leis elaboradas para garantir a isonomia entre homens e mulheres não tem sido suficiente para evitar as lamentáveis atrocidades contra as pessoas do sexo feminino. Na sua compreensão, temos no Brasil, em relação ao tema, um desenho sinistro, um cenário de crescente opressão e negação da dignidade humana.
No mundo globalizado, as informações circulam com velocidade espantosa. Todos sabemos que existem países submissos a ordenamentos tiranos, que não protegem os direitos fundamentais das mulheres e até admitem que elas vivam em condições análogas à de escravas. Sabemos, por outro lado, que as mencionadas circunstâncias contribuem para incutir na cabeça de pessoas despreparadas um sentimento de inferioridade da mulher em relação ao homem.
Em seu livro, Malaquias critica estes sórdidos entendimentos adiantando o seu ponto de vista no sentido de que, em nossa realidade, a violência contra as mulheres decorre principalmente de preconceitos machistas latentes no subconsciente coletivo de uma sociedade oriunda de um patriarcado. E defende com veemência a atuação do próprio Estado no combate às indecentes visões discriminatórias, através de ações capazes de propagar a igualdade entre as pessoas.
A violência contra as mulheres é um resquício da cultura patriarcal predominante no nosso País, a qual se pode superar com a implementação de políticas afirmativas da igualdade das pessoas.Antes dos mencionados capítulos, escreveu a introdução. Depois da terceira parte, expôs as suas considerações finais, indicando as referências à bibliografia pesquisada. Na parte conclusiva, aparecem suas alentadas meditações acadêmicas.
Josinaldo aprimorou os seus conhecimentos fazendo pesquisas no Curso de Pós-Graduação da Universidade de Santiago de Compostela, sediada na Espanha. Foi orientado em sua pesquisa pelo Professor Doutor José Julio Fernández Rodriguez. Engendrou assim o interessante estudo, que lhe rendeu a láurea de Pós-Doutor em Direito, conferida pela conceituada instituição espanhola de ensino superior.
Faculdade de Direito da Universidade de Santiago de Compostela, Espanha.
Concluída a pesquisa, dissemina o estimado confrade os conhecimentos adquiridos na Europa, publicando o livro que começa a ser comercializado. Todos os presentes devem adquirir a obra, cujo texto possui excelente qualidade científica. Trata-se de um bem fundamentado estudo, escrito com elegância e clareza, dotado de apodítica argumentação, podendo enriquecer o acervo de qualquer biblioteca.Josinaldo Malaquias analisou as causas do preconceito e da violência contra a mulher, ressaltando que a questão ainda aflige a sociedade, apesar das providências legislativas já adotadas, a exemplo da Lei Maria da Penha, vigente na República Federativa do Brasil.
Indignado com a alarmante brutalidade contra a mulher existente na coletividade, Malaquias considera ingênuas as utopias que, na modernidade, imaginaram possível, através de inovações legislativas, construir um mundo mais livre e equânime. Durante a idade moderna, inaugurada com a queda do Império Romano do Oriente, em 1453, e conclusa na última metade do século XVIII, pensou-se na possibilidade de coibir discriminações com base na racionalidade científica.
As ideais vitoriosas nos contextos das revoluções industrial, francesa e americana, de conteúdo liberal, e das revoluções russa e chinesa, de matiz socialista, ocorridas entre os séculos XVIII e XX, serviram para consolidar a esperança que fora semeada pelo racionalismo científico.
As instituições se fundaram nos alicerces das doutrinas que provocaram aqueles eventos. As nações, apegadas aos princípios democráticos, produziram legislações que incorporaram os valores liberais e socialistas, pondo o homem no ápice de suas preocupações, valorizando a liberdade e a igualdade de todos, estimulando a fraternidade como elemento indispensável à harmonia desejada pelas pessoas. Entretanto, nenhum país conseguiu concretizar simultaneamente os ideais de construção de um mundo livre, isonômico e solidário. Frustrada com a dureza da vida real, a humanidade desencantou-se com as crenças das mundividências humanistas dos dois sistemas que disputaram as preferências políticas das diferentes Soberanias. Com efeito, decorridos aproximadamente 230 anos da inauguração da idade contemporânea, as pelejas em torno das esperanças de um mundo melhor não passaram de tentativas vãs.
Malaquias, consciente disso, assinala que a humanidade não alcançou um ideal de justiça capaz de superar “a violência, a exploração do homem pelo homem, o ódio, o preconceito e a intolerância”2. E acrescenta que nenhum país logrou “assegurar uma igualdade efetiva entre os seres humanos por intermédio de leis que se convertam em imperativos categóricos”3. Com esse entendimento, o escritor afirma que a “razão instrumental, baseada na ciência e na técnica, degenerou-se na dominação, na exploração, na opressão e na violência”, muitas vezes patrocinadas pelo próprio Estado, independentemente das ideologias por eles acolhidas4.
Ao lembrar os conflitos e as guerras mundiais, notabilizadas por genocídios, enormes violências, brutais crueldades, hediondos crimes vitimizando homens, mulheres e crianças, Josinaldo aponta o abalo sofrido pelas crenças e esperanças plantadas por arautos dos direitos humanos. Ele sabe que as atrocidades dos “tempos líquidos” fortaleceram cosmovisões niilistas de alguns pensadores. Friedrich Nietzsche, por exemplo, desacreditou da organização política, admoestando: “Onde ainda há povo não se compreende o Estado, que é odiado como uma transgressão aos costumes e às leis.”5 Efetivamente impressionado com as crueldades do mundo moderno, o filósofo alemão responsabilizou a Instituição soberana, afirmando que: “O Estado é onde todos bebem veneno, os bons e os maus; onde todos se perdem a si mesmos, os bons e os maus; onde o lento suicídio de todos se chama vida.” 6
O negacionismo nietzchiano foi compartilhado por anarquistas. Para eles, tanto o Estado como o Direito consubstanciam opressivas e desnecessárias organizações. Por isso, o anarquismo recomenda sejam o Estado e o Direito substituídos por sistemas de cooperação de grupos associados7.
Caminho parecido percorreu o economista Karl Heinrich Marx, cujo pensamento Norberto Bobbio esquadrinha:
“Para Marx, o Estado não é o reino da razão, mas o reino da força. Não é o reino do bem-comum, mas do interesse de uma parte. O Estado não tem por fim o bem-viver de todos, mas o bem-viver daqueles que detêm o poder, os quais, além do mais, têm sido até agora, na história da humanidade, uma minoria. Que o Estado tenha por fim o bem-comum, o bem-viver, ou mesmo a justiça, é uma ideologia da qual a classe dominante se utiliza para dar uma aparência de legitimação ao próprio domínio. O Estado não é a saída do estado da natureza, mas sim a continuação sob outra forma. O estado da natureza, considerado de modo hipotético por Hobbes como estado no qual vigora o direito do mais forte, nunca faltou na história. Prolongou-se no Estado, ainda que não mais na forma, de resto hipotética, da guerra de todos contra todos, mas na forma de conflito permanente entre as classes que vão sucedendo e conquistando, a cada circunstância, o domínio, e que, uma vez conquistado o domínio, não podem mantê-lo senão através da força. A saída definitiva do estado da natureza talvez seja, para Marx, não o Estado, mas o fim do Estado, a sociedade futura sem Estado.”
BOBBIO, Norberto. “Teoria Geral da Política: A Filosofia Política e as lições dos clássicos.” Organizado por Michelangelo Bovero. Tradução de Daniela Beccaria Versiani. Rio de Janeiro: Campos. 2000, págs. 121 e 122.
Desiludido com os fracassos das ideologias que dividem o mundo, Malaquias não seguiu o anarquismo, não se dobrou ao marxismo comunista nem capitulou aos cantos sedutores do capitalismo liberal. Percebeu que os programas dessas doutrinas pregam o fim do Estado ou a sua redução ao mínimo possível, o que implica num retorno à barbárie dos tempos primitivos.
Josinaldo discorda, por outro lado, de quem defende, por força de frustrações, a tese da inutilidade do Direito. Sabe que é possível aperfeiçoar a experiência jurídica em busca do sonho de um mundo livre, igualitário e fraterno. Não se deixou levar pelo pessimismo. Pelo contrário, proclama a importância da Soberania, defendendo a necessidade de “ressignificar a relação entre o Direito e a Justiça na estratificação de um Estado de Direito que assegure o pluralismo político, a efetiva dignidade da pessoa humana, bem como a igualdade entre os homens e as mulheres”. 12
Para Malaquias, a violência contra as mulheres é um resquício da cultura patriarcal predominante no nosso País, a qual se pode superar com a implementação de políticas afirmativas da igualdade das pessoas. Ações desse tipo resolveriam, ao seu sentir, o problema que tanto envergonha a nossa comunidade.
Efetivamente existe, em nossa nação, uma cultura machista ainda não ultrapassada; uma cultura machista enraizada no inconsciente coletivo da comunidade; uma cultura machista prejudicial às mulheres, pois as coloca numa situação de inferioridade em relação aos homens.
Na linguagem de Malaquias, a violência contra a mulher configura “uma das mais solertes formas de violação da cidadania e dos direitos humanos”. Impõe-se, então, o combate a tais comportamentos, punindo-se com rigor os infratores e prestigiando-se os movimentos feministas. Segundo o autor, devem ser estimuladas as organizações não governamentais formadas com aquele propósito. Essas associações privadas auxiliam o Estado a executar programas destinados a imprimir na psicologia coletiva a certeza da igualdade entre homens e mulheres, o que já é expressamente anunciado no inciso I do artigo 5º da Constituição da República.
A globalização da economia, o crescimento da utilização da tecnologia da informação, a insegurança internacional, a inadiável necessidade de preservar os recursos naturais e a explosão demográfica são fatores que preocupam a humanidade nos tempos contemporâneos. Porém, existem outras questões que não podem ser esquecidas. A luta para erradicar a violência contra as mulheres é uma delas. Exige persistente esforço em mercê da melhor organização dos controles do Estado e da elaboração de um Direito mais justo e eficaz.
Josinaldo Malaquias percebeu tudo isso. Em seu livro, sugere “uma reatualização do conceito de democracia e um deslocamento epistemológico da perspectiva macro do poder para uma microfísica do poder”, que valorize os movimentos sociais afirmativos da igualdade entre homens e mulheres8.
Assiste razão ao autor. Embora estejamos atravessando um tempo de situações fragmentadas e imprevisíveis, que muitas vezes fogem do controle dos órgãos do Estado, ainda é possível continuar cultivando os princípios que orientam o Estado e o Direito produzido com o propósito de construir uma sociedade mais igualitária.
Eis o epítome da doutrina malaquiana. O livro lançado agora prova tudo isso. Atesta igualmente que, além de vitorioso jornalista, competente lente universitário, conceituado advogado criminalista, admirado escritor e aplaudido intelectual, é Josinaldo um arguto pensador, um autêntico filósofo, dotado de penetrante capacidade de reflexão.
Discurso pronunciado, na Usina Cultural da Energisa, em João Pessoa/PB, no dia 28 de novembro de 2024, por ocasião do lançamento do livro “Direito e Pós-Modernidade: Sinergia do patriarcado e violência contra mulher”, de autoria de Josinaldo José Fernandes Malaquias, membro da Academia Paraibana de Letras Jurídicas.