Se faltasse outra palavra para defini-lo, gentleman serviria, pois, de fato, ele o foi, na plena expressão da palavra. Um cavalheiro de província, sim, mas que poderia sê-lo em qualquer lugar do mundo, tamanha era sua distinção de verdadeiro lorde inglês. Um lorde dos trópicos e nos trópicos. E, sendo assim, inevitavelmente um pouco (talvez muito) deslocado entre os aborígenes, em sua maior parte uma gente rude e inculta, que costumava — e costuma — ver com tacanha desconfiança
os educados e os gentis. Pois estão acostumados à grosseria, à falta de gentileza — e de modos.
Afirmo que esse gentleman existiu entre nós e tive o privilégio de conhecê-lo. E, dentro de certos limites, tornar-me amigo seu. Eu e outros contemporâneos do curso de Direito da UFPB nos meados dos anos 1970, como Eudes Rocha Jr. e Cleanto Gomes Pereira. Já maduro e vitorioso como empresário do ramo gráfico, Hélio resolveu estudar Direito, certamente mais por curiosidade intelectual que por vocação, mesmo que tardia, já que ele, inteligente, jamais trocaria, àquela altura da vida, seus bem-sucedidos e consolidados negócios por um arriscado escritório de advocacia. E lá chegou ele um dia, de paletó e gravata de seda, e sapatos de cromo alemão, mais parecido com um catedrático que com um aluno, a misturar-se tranquilamente com a rapaziada, sem distâncias nem formalidades. Evidente que no início sua aproximação — e a nossa — foi cautelosa, como se nos estudássemos reciprocamente, até ele ser absorvido pelos colegas mais jovens, rejuvenescendo a olhos vistos nesse processo convivial. Sem jamais perder a inata elegância, chegou a trocar o paletó por camisas de manga longa, o máximo a que se permitia sua informalidade de fidalgo. Ele foi sempre fiel aos hábitos de sua geração e, principalmente, à sua maneira personalíssima de ser e estar no mundo.
Cheguei, poucas vezes, a visitá-lo no casarão da Avenida Getúlio Vargas, espaçosa e bonita residência que em tudo combinava com ele. O bom gosto expresso no mobiliário e nas obras de arte, sem prejuízo do aconchego doméstico, do qual o aprazível terraço dos fundos, voltado inteiramente para as frondosas árvores do quintal, era o melhor exemplo. E ali, como um grão senhor sem esnobismos, ele recebia os seus joviais amigos universitários, todos ainda sem destino definido, aprendizes ávidos da experiência alheia. Principalmente das explicitamente exitosas, como era a sua. Essa bela casa ainda está lá, no mesmo lugar, agora transformada em colégio, com as inevitáveis desfigurações. Igual a suas vizinhas, todas desvirtuadas em sua finalidade habitacional de origem, um corredor de antigas mansões de frente ao Liceu Paraibano, motivo de uma certa tristeza que me abate quando passo por lá.
Hélio era provavelmente vinte ou trinta anos mais velho que nós, seus colegas estudantes. Enquanto estávamos, quase todos, na casa dos vinte, ele já devia estar na casa dos quarenta ou cinquenta. É o que me parecia naqueles tempos. Para isso contribuíam certamente seu vestiário e seu sucesso profissional. Pois aquele jovem senhor já era, à época, aparentemente realizado, e nós, quase fedelhos, estávamos apenas começando a vida adulta, ainda tateando nas incertezas próprias dessa fase decisiva da existência, em que, geralmente, são tomadas decisões fundamentais, quase sempre irreversíveis. Mas, como disse, essa distância etária não constituiu, em nenhum momento, obstáculo ao nosso entrosamento. Ele desceu de suas alturas para nos encontrar e nós procuramos corresponder em sentido contrário.
Contemporâneo nosso na faculdade, havia um senhor também de mais idade, homem de negócios (e, pelo visto, de negociatas), conhecido na cidade como inadimplente contumaz e, naturalmente, alvo de muitos processos. Um espirituoso qualquer (que sempre os há entre estudantes) espalhou que ele viera estudar apenas o direito dos autores, porque o dos réus ele já conhecia de cor e salteado. Risadagem geral. Mas não era esse, claro, o caso do correto Hélio Silva.
Sucedera ele ao pai na direção da Livraria Universal e do parque gráfico, ambos situados na ainda comercialmente vigorosa Rua Maciel Pinheiro, coração da vida empresarial do Varadouro, bairro que viu a aldeia nascer. Certa vez, ele nos mostrou, a mim e a Eudes, as oficinas da imensa gráfica, uma das maiores da cidade. Dezenas de grandes máquinas a funcionar num ambiente limpíssimo, quase hospitalar, o que, por si só, mostrava o profissionalismo do empresário e de seus funcionários, estes, se não me engano, comandados por um senhor estrangeiro, talvez alemão, antigo mestre das artes de impressão, orgulhoso herdeiro de Gutemberg. No ramo dos livros didáticos e da papelaria, a Universal dominava o mercado pessoense, quiçá paraibano, ao lado da Livraria Casa dos Estudantes, do sociável Nolo Pereira, sediada na Duque de Caxias dos tempos áureos. Ressalte-se que ambas as livrarias não se interessavam muito por livros de literatura, talvez por serem poucos os leitores aldeãos.
Concluímos o curso e, de certa maneira, nos distanciamos. Não totalmente, claro. Mas ele, já feito, voltou aos seus negócios, e nós, recém-formados, saímos pelo mundo em busca dos sonhos e das oportunidades. Eu, por exemplo, fui parar em Florianópolis, atrás de um mestrado e de uma posterior vida acadêmica, que não se realizou. Eudes, foi emprestar seus talentos à Assembleia Legislativa; e Cleanto foi brilhar no antigo IPEP, onde chegou à presidência.
Passados os anos, tive notícia de que o nosso amigo mais velho enfrentava um crepúsculo melancólico (não em termos materiais, esclareço). Já não residia na casa da Getúlio Vargas, pois a artéria não mais conservava a destinação residencial de outrora. Perdemo-nos um pouco de vista. Até que recebi um dia — com sincero pesar — a notícia de sua súbita e voluntária partida.
Agora o rememoro. Veio-me ele ao pensamento um dia desses, nem me lembro a razão. E o resgato em sua plenitude dos dias da faculdade. Ele vigoroso, distinto e elegante, afável e nitidamente estimulado pela experiência universitária. Os novos saberes e os novos amigos. Um mundo que se lhe abria, alvissareiro. Que assim ele permaneça na memória daqueles jovens que o conheceram. E com ele muito aprenderam, sem que ele, sempre discreto, sequer desconfiasse.