Nova carta a Germano Romero
Germano, meu amigo,
O substantivo naufrágio, vem de naufragĭum, numa síncope de *navifragĭum, termo hipotético que deriva de navifrăgus, adjetivo que significa “que quebra o navio, que provoca o naufrágio”.
E. Isabey, 1851
O melhor, porém, meu amigo Germano, é que o adjetivo frágil, em latim, fragĭlis, tem sua raiz proveniente do mesmo verbo frango, frangĕre. Logo, a expressão nau frágil e o substantivo naufrágio são formados pelos mesmos radicais. A combinação e o contexto é que os tornam diferentes.
A etimologia é uma maravilha, não é mesmo, meu amigo?
Aproveitando que o assunto está girando em torno do mar, pensemos, Germano, na origem de náusea. Por incrível que pareça, o vocábulo tem origem em navio ou nau, vindo diretamente do grego náos (ναῦς). A relação entre os termos se dá pelo fato de que náusea, em grego (ναυσία ou ναυτία) ou latim (nausĕa), é o mal do mar,
F.A. Biard, 1857
Perceba, meu querido amigo, como o sentido das palavras vai se transformando e, muitas vezes, se afasta da sua origem. O afastamento, contudo, não é completo, como se fora uma ruptura irremediável, pois a transformação tende a deixar a marca da etimologia. Para se constatar esse traço etimológico, exige-se o conhecimento do percurso que a palavra realizou.
Vejamos, meu amigo, como isto acontece com a palavra tóxico. Alguém poderia imaginar que existe alguma relação, entre ela e as palavras arco e flecha? À primeira vista, dir-se-ia que não. Trata-se de uma relação etimológica bem mais escondida do que aquele que ocorre entre nau e náusea. Para entendê-la, teremos de recorrer ao mito grego. Tóxico (τοξικός) é o que convém para um arco ou para as flechas, como define o Le grand Bailly, o dicionário grego-francês.
C. Eckersberg, 1812
O neutro singular τὸ τοξικόν, cujo significado primeiro é o de “algo relativo a uma flecha”, podendo ser até o caniço de que ela é feita, assume o sentido translato de “veneno de que se impregna uma flecha”. É nesse instante que precisamos do conhecimento que o mito nos oferece.
Dentre os 12 trabalhos impostos a Hércules, pelo rei Euristeu, a mando de Hera, ainda enciumada pelo fato de que o herói era filho de Zeus com a mortal Alcmena, encontra-se o embate do herói com a Hidra de Lerna, terrível serpente, de hálito pestífero e mortífero, que habitava o pântano da região que ajudou a compor o seu nome.
Hércules e a Hidra de Lerna G. Reni, 1621
Filoctetes na ilha de Lemnos Pierre Cabanel, S.XIX
A viagem com as palavras, que a etimologia nos permite, Germano, proporciona uma aventura sem limites. Desse modo, a vida, que é uma nau frágil, muitas vezes nos causando náuseas, diante de tanta toxidade, torna-se amena e agradável com o conhecimento que ela mesma, a vida, pode nos legar.
Abraços, meu amigo!
Milton