Nova carta a Germano Romero
Germano, meu amigo,
O substantivo naufrágio, vem de naufragĭum, numa síncope de *navifragĭum, termo hipotético que deriva de navifrăgus, adjetivo que significa “que quebra o navio, que provoca o naufrágio”.
O adjetivo é formado por um substantivo, navis, (navio, nau) e um verbo, frango, frangĕre, cujo sentido é “quebrar, romper, fazer em pedaços”. Naufrágio, portanto, é a nau feita em pedaços, por alguma tormenta ou por ter batido contra os escolhos ou rochedos do mar.
O melhor, porém, meu amigo Germano, é que o adjetivo frágil, em latim, fragĭlis, tem sua raiz proveniente do mesmo verbo frango, frangĕre. Logo, a expressão nau frágil e o substantivo naufrágio são formados pelos mesmos radicais. A combinação e o contexto é que os tornam diferentes.
A etimologia é uma maravilha, não é mesmo, meu amigo?
Aproveitando que o assunto está girando em torno do mar, pensemos, Germano, na origem de náusea. Por incrível que pareça, o vocábulo tem origem em navio ou nau, vindo diretamente do grego náos (ναῦς). A relação entre os termos se dá pelo fato de que náusea, em grego (ναυσία ou ναυτία) ou latim (nausĕa), é o mal do mar, que acomete os que sentem enjoos ou vontade de vomitar, por causa do balanço do navio sobre as ondas. A partir daí, o termo se expandiu para qualquer situação, no mar ou fora dele, que provoque náuseas em alguém, seja navegante (ναύτης) ou não.
Perceba, meu querido amigo, como o sentido das palavras vai se transformando e, muitas vezes, se afasta da sua origem. O afastamento, contudo, não é completo, como se fora uma ruptura irremediável, pois a transformação tende a deixar a marca da etimologia. Para se constatar esse traço etimológico, exige-se o conhecimento do percurso que a palavra realizou.
Vejamos, meu amigo, como isto acontece com a palavra tóxico. Alguém poderia imaginar que existe alguma relação, entre ela e as palavras arco e flecha? À primeira vista, dir-se-ia que não. Trata-se de uma relação etimológica bem mais escondida do que aquele que ocorre entre nau e náusea. Para entendê-la, teremos de recorrer ao mito grego. Tóxico (τοξικός) é o que convém para um arco ou para as flechas, como define o Le grand Bailly, o dicionário grego-francês. O adjetivo é proveniente do substantivo tóxon (τόξον), palavra neutra grega que designa tanto o arco quanto a flecha, cujo plural τὰ τόξα significa o conjunto de arco e flexas. Já a ação de atirar com arco e flechas é designado pelo verbo τοξεύω.
O neutro singular τὸ τοξικόν, cujo significado primeiro é o de “algo relativo a uma flecha”, podendo ser até o caniço de que ela é feita, assume o sentido translato de “veneno de que se impregna uma flecha”. É nesse instante que precisamos do conhecimento que o mito nos oferece.
Dentre os 12 trabalhos impostos a Hércules, pelo rei Euristeu, a mando de Hera, ainda enciumada pelo fato de que o herói era filho de Zeus com a mortal Alcmena, encontra-se o embate do herói com a Hidra de Lerna, terrível serpente, de hálito pestífero e mortífero, que habitava o pântano da região que ajudou a compor o seu nome.
Possuindo muitas cabeças (de cinco a cem, a depender da narrativa. Ovídio, nas Metamorfoses, Livro IX, verso 72, refere-se a cem cabeças, no combate entre Hércules e o rio Aqueloo; Apolodoro, em Biblioteca, Livro II, 5, 2, atribui-lhe 9 cabeças), a Hidra tornou-se um dos mais difíceis trabalhos do herói. Hércules, inicialmente, enfrentou-a com flechas inflamadas, depois passou a decepar as cabeças do monstro, mas não conseguia matá-la, pois nasciam outras duas, no lugar de cada cabeça decepada. Foi necessário que o herói, depois de decapitar a serpente, as cauterizasse, com a ajuda do seu sobrinho Iolau, impedindo, assim o surgimento incessante de novas cabeças. Ao finalizar o seu trabalho, Hércules embebeu as pontas de suas flechas no sangue da Hidra, tornando-as ainda mais mortais. Quem escapasse do ferimento por elas produzido, dificilmente escaparia da letalidade do veneno de que as flechas estavam impregnadas. O herói Filoctetes herda o seu arco e as suas flechas, por ter ateado fogo à pira de fúnebre de Hércules, em sua morte, no monte Eta. Essas flechas deveriam estar em Troia, como uma condição para a cidade ser destruída, mas isto é outra história.
Observe, meu amigo, como “andou” o termo tóxico, passando de “relativo a flecha” a “algo venenoso”, guardando, porém, o sentido da letalidade.
A viagem com as palavras, que a etimologia nos permite, Germano, proporciona uma aventura sem limites. Desse modo, a vida, que é uma nau frágil, muitas vezes nos causando náuseas, diante de tanta toxidade, torna-se amena e agradável com o conhecimento que ela mesma, a vida, pode nos legar.
Abraços, meu amigo!
Milton