Leio que o 25 de dezembro é data improvável. Não, Cristo não teria nascido em tempo tão frio, porquanto o evento não condiz com alguns relatos bíblicos: o de um céu estrelado, o de pastores e rebanhos ao relento e o do censo determinado por César.
Os dirigentes romanos e judeus estavam longe de ser burros. Tirariam pouca gente de suas casas para jornadas penosas até Belém com temperaturas próximas, ou abaixo de zero, como naquelas paragens ocorre até os dias de hoje. E, ainda por cima, para dar nome e endereço ao governo e seus cobradores de impostos. Tampouco, os pastores contemplariam estrela-guia debaixo de chuva ou, possivelmente, de neve. Nesta época do ano, bois, vacas, jumentos, cabras e ovelhas permaneciam (e ali ainda permanecem) nos estábulos.
Mas, ouçamos o minucioso Lucas: “Naqueles dias saiu um decreto da parte de César Augusto para que todo o mundo fosse recenseado. Esse primeiro recenseamento foi feito sendo Quirino governador da Síria. E todos iam alistar-se, cada um à sua própria cidade. Subiu também José da Galileia à Judeia, à cidade de Nazaré, à cidade de Davi, chamada Belém (porque era da casa e família de Davi) para alistar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida. E aconteceu que, estando eles ali, se cumpriram os dias em que ela havia de dar à luz. E deu à luz seu filho primogênito, e envolveu-o em panos, e deitou-o numa manjedoura porque não havia para eles lugar na estalagem”. (Lucas 2:1-7). Os versículos seguintes falam de pastores no campo com seus rebanhos, de um anjo com a notícia, as condições e o endereço desse nascimento.
O que ainda não parece bater bem é este Cristo louro, de olhos azuis. Nem, em outra hipótese, este perfil europeu com olhos e cabelos castanhos, conforme retratado durante séculos desde os templos da Europa até a Paróquia de Nossa Senhora del Pilar, na terra pequena, pobre e sofrida de José Lins do Rego.
Representações artísticas de Cristo, por: Pompeo Girolamo (1767) ▪ Quinten Massys (1890) ▪ Carl Heinrich Bloch (1873) ▪ Heinrich Hofmann (1884) ▪ Rembrandt (1661)
Tempo atrás, eu grudava os olhos e os sentidos em “A verdadeira face de Jesus”, documentário que retrata, com alguns saltos, o percurso do Sudário, desde os primeiros anos do Cristianismo até os dias modernos. A exibição, na tevê a cabo, fazia parte da enxurrada de fitas típicas da temporada. Ainda agora, liga-se o televisor e pronto: lá está o tema em tudo o que é produção filmográfica, seja com pitadas de ciência e religiosidade, seja nos romances de água de flor de laranja saídos de studios europeus e americanos, sobretudo, destes.O documentário em questão retrata, em meio a depoimentos de historiadores e teólogos, o trabalho de uma equipe de artistas gráficos liderada por Ray Downing (do Studio Macbeth) que, em 2010, teve acesso exclusivo ao Sudário por cinco dias, em Turim, para o trabalho fotográfico. O propósito era o de um retrato fiel, em três dimensões, do homem da mortalha.
O Cristo, em pessoa? Bem, em 2008, uma pequena ponta daquele tecido fora submetida ao teste com Carbono 14, o mais confiável processo científico de datação conhecido no mundo, que àquilo dava entre 1.260 e 1.390 anos. Portanto, mais de 12 séculos depois do nascimento do filho de Maria, segundo a história então alçada às manchetes do jornalismo universal. O público brasileiro dela tomou conhecimento, notadamente, por meio do domingueiro “Fantástico”. Quem, entre os mais adentrados, disso não lembra?
Acontece que alguém logo comprovaria a má escolha dos pesquisadores em relação ao pedacinho extraído da borda do tecido para o exame laboratorial: coincidentemente, um remendo no pano com fios medievais. E a dúvida se instalou. O Vaticano, por sua vez, não mais liberou o Sudário para análises novas. As manchas ali captadas, fotograficamente, por Downing e levadas à perícia mostraram-se, por seu turno, compatíveis com os açoites e o processo de crucificação biblicamente relatados.
Mas vamos à face em 3D reproduzida com o auxílio dos recursos avançados da moderna computação gráfica. O que aparece é um ser de cabelos negros, traços grossos e pele morena. Ou seja, tudo muito de acordo com a aparência dos filhos de Belém, na Palestina, há 2 mil e poucos anos.
Aculturação é fogo, meu companheiro e minha companheira. É o que também nos traz um Papai Noel gordo e nórdico aos natais de quase todo mundo, desde Nova York até Coxixola. E, não menos, faz pesar sobre galhos retirados da Caatinga neves de algodão. Repetindo: não combina bem com a razoabilidade nem um Cristo branco em terra de morenos nem natais nevados em verão tropical, como os por aqui celebrados.
Pessoalmente, nunca fui ao ponto de enfeitar xique-xiques e sempre duvidei, desde muito novo, deste Papai Noel de barba branca, botas de cano alto, luvas e roupa ridiculamente vermelha num calor de derreter juízo. Desse camarada gordo que voa de trenó e entra por chaminés. Há muito suspeitei de que sempre estivemos a comprar produto errado, artigo falso. Não é nem nunca foi nosso o “Merry Christmas” desejado ao próximo. É mercadoria alheia.
Tudo bem, compro o que leio e entendo o quanto o assunto é polêmico. Voltemos, contudo, ao suposto aniversariante e combinemos o seguinte: a aparência física de quem quer que seja é o que menos deveria importar à fé e à cristandade.
De modo que o reparo fica por conta do Cristo com traços europeus que nos acostumamos a ver nos grandes e pequenos templos ocidentais. À luz da razão, é mesmo difícil supor que tivesse pele muito branca, olhos azuis e cabelos alourados aquele homem santo e justo que se juntava à ralé, a pescadores e, em alguns casos, a prostitutas, na defesa dos injustiçados e oprimidos haja nascido, ou não, em dezembros nevados. Combinemos, ainda, que o Espírito de Natal deveria pairar sobre nós, todo santo dia, de janeiro a janeiro. Não é? A propósito, conta-se que o Papa Júlio I institucionalizou o Natal em 25 de dezembro, mais de 300 anos depois do nascimento de Cristo.