A leitura é uma forma de felicidade. É o diálogo que mantenho vivo com certos autores que me enche de prazer e me faz ser outra. Leio de acordo com o meu estado de espírito. Meu jeito de ler começa quando vou zanzando pelas livrarias e sebos, adquirindo os livros que me atraem, abandonando aqueles que me entediam. Quando lemos reescrevemos em silêncio. Fazemos nosso o texto do outro, numa espécie de antropofagia. Assumimos o lugar do autor. Com olhar crítico, atento, vamos entrando num tipo de simbiose ou devaneio quando tudo avança no universo dos vocábulos mágicos,
tecendo com lirismo ou com angústia certas situações da condição humana.
Sándor Márai faz parte desses autores que me alimentam a paixão da leitura. Em Memórias da Hungria ele fala dessa relação autor/leitor e elucida com perspicácia a questão:
“Para que a obra permaneça viva o escritor deve saber que existe em alguma parte, no presente ou no futuro, um leitor, esse estranho personagem dialético, ao mesmo tempo aliado e adversário, que estimula seu parceiro ao mesmo tempo em que o contesta e cuja realidade sensual e ambivalente lembra a de uma mulher numa relação amorosa.”
Sou todos os livros que amei, de Rimbaud a Ralph Emerson, das caricaturas de Daumier às reproduções mecânicas de Andy Warhol. Sou Amós Oz, Valéry, Baudelaire, Clarice, Virginia Woolf, sou Octavio Paz, Drummond, Bandeira, Fernando Pessoa, sou Robert Walser. Textos que se tecem uns nos outros compondo o cerzido do ser quem eu sou. Cada texto produz outro que dialoga, que argumenta, que se faz outro.
Fonte: Wikimedia
Ler é uma relação entre o leitor e a obra. É também uma relação consigo mesma. O texto se faz espelho e revela a nós mesmos. Amamos alguns autores apenas por ter lido seus livros. Apesar de não os conhecer pessoalmente, tudo se passa como se os conhecêssemos. Às vezes, eles falam de coisas que parecem só nossas. Penetram no mais íntimo de nós. Uma energia vigorosa se insinua e vemos afluir uma verdadeira troca de pensamentos.Minhas leituras seguem ao sabor de minha idiossincrasia, rastreando os momentos da minha vida. Volto sempre a alguns autores. Talvez porque certos livros não se entregam por completo numa primeira leitura, como acontece com os poemas, talvez para descobrir outros vieses a cada nova leitura, como se estivessem sendo reescritos na própria leitura. Talvez porque certos autores atingem em cheio coração e mente. Um jeito especial de contar que me fascina. Ao falar do desimportante. Ou a consciência aguda do ser em sua singularidade. Leio como quem continua à procura de si mesma. Ou para escapar de mim. Me evadir de um presente opressivo. Porque somos sempre outros em momentos diferentes. Ou nos tornamos outros depois de lê-los.
Há livros que são seres intensos. O êxtase que por vezes me provocam me trazem a leveza de um estado de espírito por dias a fio. É na carne que sinto a subjetividade do papel. Quando isso ocorre me demoro em suas páginas, são dias de confabulação. Foi assim com o livro A dificuldade de ser, de Jean-Cocteau. Sentia a vida que jorrava de suas palavras, a energia do pensamento. O autor diz ter misturado bastante sua tinta para sentir seu pulso como o rastro da sua própria substância. Reli-o recentemente em português numa bela edição de capa dura da editora Autêntica.
Descobri Cocteau em uma edição barata de livro de bolso numa pequena estação de trem no interior da França, em Limoges. O livro me causou um enorme choque, ele caíra em minhas mãos sem nenhuma indicação. Lembro de ter lido e relido como se quisesse decorar suas páginas. O autor parecia encarnar-se em mim, sua voz saía de minha garganta, suas palavras brotavam de mim. Um ânimo aceso não me dava repouso. Todo meu corpo vibrava ao som daquelas palavras. É um livro vivo. Seu belo título o autor roubou-o de uma frase do escritor Fontenelle no leito de morte. Com quase cem anos, o médico lhe pergunta o que sentia e ele lhe responde: “sinto uma dificuldade de ser”. Autobiográfico, o livro é um texto introspectivo, usa uma linguagem aforística e sensível. O escritor se pergunta sobre a amizade, a morte, a arte, a frivolidade, ao mesmo tempo em que nos faz reviver raros instantes de sua vida, ao nos revelar sua alma de poeta, enquanto fala de sua infância, de seu mundo do teatro, do riso, de sua alma errante. Rememora seus laços afetivos com Radiguet, Colette, Picasso, Diaghilev, Apollinaire, Gide, autores com quem conviveu e o impressionaram. Seu espírito é leve como era seu traço, ou sua expressão. O autor se revela, se confessa, se confia, conta e reconta e é ao fazer reflexões sobre a própria vida que toca a vida de todo ser humano.
Recentemente fiz uma tradução em que a escritora francesa Jeanine Worms fala sobre sua amizade com Cioran, Beckett e Ionesco. De forma saborosa relata o início da convivência com esses ilustres senhores na época em que suas obras começavam a aparecer e a se tornarem conhecidas. Um dia caminhando pelo Bd. St. Germain, ela conta que parou diante de uma vitrine para observar um único livro exposto: A súmula da decomposição - Cioran. O autor era desconhecido. Entra na livraria, folheia e o compra. Diz ter devorado o livro na mesma noite. “Lírico, mas de implacável lucidez. Um estilo denso e vigoroso recheado de ímpetos balcânicos” diz Jeanine. É assim que um livro nos atrai, ele próprio nos acena e se apresenta para nós.
Foi assim que me chamou atenção o livro Para entender uma fotografia, de John Berger. Ao examinar as fotografias do húngaro André Kertész, publicadas com o título Sobre leituras, o autor britânico nos oferece uma divertida e lúdica visão da leitura:
“As páginas contam uma história, o deslocamento torna-se uma jornada e as páginas tornam-se um veículo, um meio de transporte. Não obstante, quando lemos mantemos as páginas bem imóveis. Há uma tensão entre o gesto manual e a viagem. Os que primeiro leram Homero voaram para Troia. Kertész, foto após foto, nos faz lembrar isso. Vemos leitores se agarrando às páginas que estão decolando no ar, ou que acabaram de pousar. O volátil ato de ler. Podemos ver isso nos gestos e no corpo de qualquer um que esteja lendo.”
Em uma biblioteca as vozes se confundem em histórias do passado e do presente. O silêncio reinante reflete um sussurro. Há momentos em que me vem lentamente um tipo de monólogo interior para o qual acorrem vozes de personagens e de autores. Como a de Roberto Bolaño, em seu Noturno do Chile, quando o personagem do jovem envelhecido vai visitar a biblioteca do grande crítico literário, seu amigo já morto, que “de alguma maneira misteriosa a biblioteca encarnava a ausência e a presença do crítico Farewell".
E ele então, pergunta “ao seu espírito por que havia acontecido com eles o que afinal havia acontecido. Sem resposta, aproxima-se de uma estante e toca com a ponta dos dedos nas lombadas dos livros.”Quando um autor consegue com poucas palavras criar uma imagem pungente da angústia, todo o seu ser está contido ali, toda humanidade está presente. E assim, outros virão e se espelharão em Bolaño e a partir dele, continuarão a cerzir a mesma história sem fim de homens e mulheres, de sua cultura e dos seus mundos. As bibliotecas parecem guardar seus segredos e sabedoria para tempos futuros, quando já não estaremos aqui, nem seus autores parecem conhecer o todo contido em suas próprias palavras. Estas, estão sempre grávidas de sentidos futuros. E assim me vem a voz de Philippe Sollers:
“Ler é saber do que falam as entrelinhas, as reticências, o não dito, as alusões, as afirmações pelas ausências. É conhecer textos anteriores, é ter lido mais, conhecer a história, os personagens históricos, suas falas e seus atos. É ter se interessado pelo seu tempo e o de outros séculos. Ler exige mais que apenas o texto presente, há um outro anterior que o influencia, ou o nega, ou instiga, pergunta, provoca; a escrita é sempre continuação. Um texto jamais é único. É intertexto, rede, trama, tecido.”
Como Stephen Dedalus, em Um retrato do artista quando jovem, também eu vivo uma busca mais autêntica de estar no mundo. Quando Stephen explica ao seu amigo Cranly, “eu não quero servir àquilo em que não acredito mais, seja meu lar, minha pátria, minha religião. Quero me expressar sob a forma da existência ou da arte tão livremente quanto possível, com a plenitude que eu conseguir, usando silêncio, exílio e astúcia,” é quando ele se dá conta que é através da literatura que se abre um caminho de sua própria escolha.
Assim como os autorretratos de Courbet em sua procura do eu.
Ultimamente penso muito no tempo. No tempo e nos livros. Certos livros me arrebatam o coração e o tempo, e pareço esquecer do mundo. Deixo de encontrar os amigos, a luz do dia se vai, faz-se noite e ainda estou ali, confabulando com as palavras impressas. A rotina do cotidiano é interrompida. Vejo-me vivendo em um mundo em suspenso. A casa parece estranhamente silenciosa. É de tempo e de silêncio que anseio. Pra mim? Não exatamente. Para aquele feito de tinta, de palavras, de símbolos. Esse ser metafórico que me fala. Sou toda ouvidos. Fico assim, em estado de alheamento, como se minha casa fosse um mundo de papel, onde suas vozes se cruzam com as minhas questões de vida e morte.
O silêncio e o tempo criam espaços. Vivo intensamente através das suas palavras. Metáforas. Fragmentos dos quais nascem o sentido, caminhos cruzados, narrativas desencontradas, uma lógica interna as governa. O êxtase se avizinha do non-sens. Para sair desse estado de espírito passo a rabiscar listas, um jeito de organizar as coisas práticas do cotidiano. Mas antes penso, preciso salvar a memória das coisas, a beleza é sempre súbita, nos toma de assalto e logo se vai. Busco as palavras. São elas que salvam alguma coisa. A beleza secreta das coisas salva pelas palavras. A beleza parece ser do domínio da paixão. Coisas que me ultrapassam sem que me dê conta. Fico cheia de espanto e reajo através de uma escrita titubeante. A escrita se faz de artifícios para melhor dizer os silêncios de uma obra. Certos livros me comovem mais, talvez porque dialogam mais com o meu eu. E então penso: era assim que eu gostaria de escrever se soubesse escrever.
É a leitura que me leva a esses desvarios da palavra escrita.