Deu pra notar a ausência daquele vendedor de livros usados empilhados a partir de um pé de parede da esquina esquerda do Paraíba Hotel? Era ele do lado oposto ao de Régis, este um dos antigos gazeteiros que fundou seu ponto e sua parte com o Ponto de Cem Réis à porta de entrada do hotel.
Uma vez ou outra encontrava-se nas pilhas ao rés do chão do lado oposto algo a despertar interesse de leitura. E por uma ninharia, um troco que se recebesse das lojas vizinhas mais caras e bem menos frutuosas. Quando um pacote de café custava 4 ou 5 reais menos inflacionados empatava em preço com a maioria dos títulos e achados às vezes raros. Preciosíssimos se se levar em conta a confissão em crônica de 1960, de um leitor especial como o poeta Drummond. Pois não é que há dez anos dei com um exemplar da Careta, a revistinha que dosou o humor nascente do único fazendeiro do ar da poesia universal? Está em seu Diário: “Fui levar livros a um preso, na Penitenciária Lemos Brito. De volta, procurei na Rua Frei Caneca a sede da revista Careta que acaba de desaparecer e que eu adorava quando criança pelas caricaturas de J. Carlos, seu ilustrador na fase áurea.”
A anotação de Drummond vem de novembro de 1960. Ora, dezesseis ou dezessete anos antes, um dos coroinhas do Ginásio Pio XI, em Campina Grande, obviamente longe do mesmo auspicioso proveito mas sem menor incitação, passava a dividir o gibi de capitão Marvel pela Careta de J. Carlos. Escolhido pelo diretor, padre Odilon, depois de ajudada a missa e tomado o café, para transpor os portões do internato e sair em liberdade para apanhar os jornais de seu hábito diário de leitura, o Jornal do Comércio do Recife, o Diário de Pernambuco e a Imprensa, sentia-me batendo asas com a passarinhada dos jardins da rua de Seu Cabral, a Getúlio Vargas, e a liberdade bem luminosa, da cabeça aos pés, nessa meia hora de recreio interior.
E nisso, tropecei com o olhar no mesmo objeto de sedução do poeta menino que eu viria ler muito depois. Uma vez ou outra o velho Davino rendia-se a meu olho pidão e caía com a Careta.
Oitenta anos depois, passando sem deixar de olhar para a pilha do livreiro de pés no chinelo, a camisa solta e bem aberta ao peito, vendendo livro como quem vende mangalho, avisto um exemplar da Careta num topo de pilha com um peso em cima.
E me vejo rápido voltando a Campina, ao padre Odilon, a seu Davino, a Drummond, inteiramente desligado dos setenta e tantos anos que me dissociavam da submersa emoção. Folheio venturoso o meu achado, enfio a mão no bolso, sem pena, fosse quanto fosse, já apertando a revistinha debaixo do braço.
— Quanto é? – disponho-me.
— Tá vendida, seu Gonzaga, deixei bem à mostra pra não esquecer quando ele voltar.
— Pago o dobro, o triplo, quanto é?
— Ele já pagou, me desculpe, espere por ele, quem sabe se não lhe cede!?
Bem, a partir daí já não era mais a revista o que importava. Era a grandeza do homem que irrompia daquela desarrumação e que já não pude encontrar, há poucos dias, quando saí de mãos para trás querendo saber o que vão fazer de novo no Ponto de Cem Réis.
— Onde está ele – perguntei a sua vizinha que continua na sua banca de bicho.
— Ele está noutra, se foi há uns dois anos com a Covid.
Um homem que nem o nome eu sabia.