Indicam-me a farmácia de manipulação “que fica defronte o jornal O Norte”. Indicação de três dias atrás. Como gostei! Reparei na menina que me falou assim e não a vi com idade para fazer de um jornal fechado há mais de quinze anos um ponto de referência. Menina recepcionista se muito nos seus 18 aninhos.
E lá me vou, a memória se encarregando de povoar as casas fechadas de meus antigos sonhos de morada,
Vindo por trás do Liceu, dobro à esquerda para sair na Pedro II, mesmo em frente à casa de D. Ada, esposa do desembargador João Santa Cruz. Residiam antes parede-meia com a sede ostentosa da velha A União. E me vendo no papo diário com o marido à passagem pela sua janela, adotou-me em seu café das tardes, quando o jornal ainda não havia me assimilado bem. Isto nos meus 20 anos, principiante de redação.
O marido de D. Ada reunia, simpaticamente, as honras de sua classe e as de todo o povo, de onde vinha a maioria de sua clientela. Deputado cassado, trancafiado em Buraquinho na Intentona de 1935, vinte anos depois foi escolhido desembargador na lista enviada pelo TJ ao governo conservador do usineiro Flávio Ribeiro.
E enquanto a farmácia aviava a receita, saí para aguardar lá fora, recostado à mureta da casa de outro desembargador, Dr. Pedro Damião Peregrino de Albuquerque. Vem fácil e rápido o nome todo por ter sido outro notável da nossa Justiça e dos respeitos gerais da cidade. Baixinho, muito reservado, crescia admiravelmente nos seus atos e despachos, tudo muito discreto, realçando-se por ser justo.
Saindo desse reino eis-me, sem querer, com os olhos no real, no visível, na pequena favela amontoada de hoje sobrepondo-se ao edifício a que assisti construir, um sonho de arquitetura compatível com a euforia modernizante do jornal off set dos anos 1970.
O jornal que me fizera surpreso e feliz ao chegar aqui, entrar nele com suas três linotipos e sua impressora plana, os rolos sugando o papel de manutenção ainda manual como eu vira pela primeira vez no semanário “O Rebate” de Campina. Era um fevereiro de 1951, Zé Américo alçado havia poucos dias ao governo e o Gegê da marchinha de João de Barro e Zé Maria de Abreu, no Carnaval do ano, voltando à presidência depois de despencar como ditador: “Ai, Gegê, que saudade que nós temos de você.”
Como as vitórias se derrotam! Um jornal que vim ter parte efetiva com ele, com a sua história retomada em 1950 para a campanha de Zé Américo ao governo, que rendeu orgulho e poder, e que não sei como o portentoso Marcone Goes, construtor da nova sede, conseguiria hoje entrar e sair apertando-se entre os atuais ocupantes do antigo império, sufocado por casebres e barracos debaixo dos quais desapareceu a logomarca que ajudei a criar.
Onde ficaram as nossas noites, o trabalho de vistas no futuro através de três gerações, desde Orris Soares e Rocha Barreto a Téocrito, Evandro, Rubens Nóbrega e os saudosos Crispim, Martinho, Agnaldo, Galvão? Onde estou eu nesse amontoado?
— Seu Zé! — gritam-me do balcão da farmácia — Está aqui, a pomada está pronta.