A passagem de um ano para o outro nada muda em nós. Sabemos disso, mas cultivamos a ilusão de que alguma coisa nova com...

Ano-Novo e utopia

ano novo 2025 desejos
A passagem de um ano para o outro nada muda em nós. Sabemos disso, mas cultivamos a ilusão de que alguma coisa nova começa. É difícil encarar o novo ano sem lhe dar cores utópicas; isso compensa o que não conseguimos conquistar nos 365 dias que ficam para trás, e nos fortifica a esperança.

Um bom cardápio dessa utopia se encontra em “Vou-me embora pra Pasárgada”, o famoso poema de Manuel Bandeira. As imagens da Pasárgada do poeta correspondem a nossas fantasias comuns –
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Kateryna Hliznitsova
algumas ingênuas, outras atrevidas. Algumas cínicas em seu pragmatismo; outras inocentes e gratuitas, como o espírito que faz soprar a poesia.

Para muita gente, a maior delas é “ser amigo do rei”. Cair nas boas graças do maioral da Corte é fazer parte de uma confraria seleta, que tem acesso a mordomias e prazeres proibidos ao resto dos mortais. Verbas, cargos, comissões, imunidades. Quantos não sonharão hoje à noite com um passaporte para esse reino exclusivo, onde se ganha muito e de onde se sai com uma régia aposentadoria?

Outros preferem ter “a mulher que querem, na cama que escolherão”. Sabiamente o poeta intensifica a perspectiva do prazer referindo não apenas a figura feminina, como também o móvel no qual se daria o venturoso encontro. Pois há deles que, pela exiguidade ou a dureza, não se prestam à contorcida ginástica dos amantes. Além do mais, a resistência do móvel desperta na imaginação do aquinhoado com essa ventura a possibilidade de não ser uma mulher só, já que em Pasárgada todas vão olhar para ele. Todas não, assim também é exagero; só as bonitas.

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Kateryna Hliznitsova
Há quem sonhe com prazeres simples, como “fazer ginástica, andar de bicicleta, tomar banho de mar”. Ter coragem e disciplina para ir à academia é o ideal de matronas e socialites que acabaram se convencendo de que ninguém emagrece sem suar. Muitas sabem por experiência própria que é inútil a cirurgia de redução do estômago. Depois de uns meses, o órgão se recompõe e parece que se torna mais voraz.

Há utopias para todos os desejos na composição do “São João Batista do Modernismo”. Em outro de seus famosos poemas, ele lamenta “a vida que podia ter sido e que não foi” – um dos versos mais pungentes da nossa lírica, pois expressa o que nos tornará mesmo tristes quando cruzarmos (bêbados ou não) o umbral de mais um ano.

Não há utopia que nos console desta certeza crua, a que chegamos toda vez que morremos um pouco, como agora: nossa vida é um desvio, um simulacro, uma cópia embotada do que podia ter sido – e não foi.

De qualquer modo, leitor, Feliz Ano-Novo!


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  1. O velho Bandeira sabia das coisas. E você, Chico, também sabe. E compartilha conosco a sua ciência, generosamente, a cada texto. Feliz Ano Novo! Seja em Pasárgada ou aqui mesmo. Obrigado e grande abraço. Francisco Gil Messias.

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  2. Anônimo1/1/25 15:03

    Grato, amigo Gil! Feliz 2025 para você e os seus!

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