No final de 1636, a presença dos holandeses em parte do Nordeste brasileiro se aproximava dos sete anos. A conquista do território pelos flamengos esbarrara em uma obstinada reação de guerrilhas locais, o que restringia a área ocupada a uma estreita faixa litorânea de cerca de 70 km que ia de Natal até Porto Calvo, no atual Estado de Alagoas, onde estavam concentradas as forças de resistência comandadas pelo Conde Bagnuolo, militar napolitano a serviço do governo espanhol. Naquele momento,
já fazia quase 60 anos que todo o Império português estava subordinado à Coroa da Espanha.
A invasão da região pelos flamengos fora um empreendimento de responsabilidade da Companhia das Índias Ocidentais, uma empresa comercial criada na Holanda para, em regime de monopólio concedido pelos Países Baixos, conquistar e explorar economicamente possessões portuguesas e espanholas nas Américas e na costa ocidental da África. Naquela ocasião, a Companhia holandesa encontrava-se em dificuldades financeiras com relação ao seu negócio no Brasil. Segundo o historiador inglês Charles Boxer os gastos com a ocupação excediam “ao lucro proveniente da venda do açúcar, do pau-brasil e outros produtos coloniais”. Além do mais, não havia uma perfeita integração entre a administração civil e o comando militar batavo, o que prejudicava as ações neerlandesas na região. A solução encontrada pelos holandeses foi criar um governo-geral no Recife com amplos poderes para deliberar sobre assuntos civis e militares.
Com o pomposo título de “Governador Capitão-General e Almirante de Terra e Mar” os batavos indicaram para comandar as suas ações no Brasil João Maurício de Nassau, militar de origem alemã com laços de parentesco com o governante holandês Frederico Henrique, o Príncipe de Orange. Embora tivesse se destacado nas lutas de independência dos Países Baixos contra os espanhóis, Maurício de Nassau, que tivera educação esmerada, mostrava-se mais inclinado para a área humanística do que propriamente para as matérias militares e, nas palavras de Boxer, “mantinha estreito convívio com artistas, poetas e homens de letras”.
Nassau constituiu um grupo que incluía jovens e promissores cientistas e pintores – todos com menos de 30 anos - para acompanhá-lo ao Brasil com o objetivo de fazer um levantamento dos diversos aspectos da área que fora ocupada pelos holandeses. Para a historiadora da arte Svetlana Alpers esse grupo, que poderia ser considerado como formado por “descritores da natureza” objetivava “fazer um registro do Novo Mundo que seria encontrado”. Alguns nomes dos que viajaram com Nassau teriam sido sugeridos por Constantijn Huygens, o poderoso secretário do Príncipe de Orange e pai do renomado físico Huygens. Dentre eles estavam o médico Willem Piso, o astrônomo e cartógrafo alemão Georg Markgraf e dois pintores, Albert Eckhout e Frans Post. Eckhout teria o encargo de registrar a fauna, a flora e os nativos e Frans Post a missão de pintar a paisagem da região.
Pinturas de Albert Eckhout, feitas no Brasil, S.XVII ▪ Rijskmuseum, PD
São escassos os dados biográficos sobre Frans Post e aqueles que são conhecidos estão disponíveis em uma excepcional obra, elaborada por Pedro e Bia Corrêa do Lago: Frans Post (1612-1680) Obra Completa (Editora Capivara), que teve a sua terceira edição em 2023. Trata-se de livro de arte muito bem editado contendo um catálogo completo (ou raisonée como comumente se diz) da obra de Post com apresentação de detalhes de telas,
além de textos introdutórios de especialistas na obra do artista neerlandês.Nascido em Haarlem, que era, depois de Amsterdã, o principal centro cultural holandês da época, Frans Post pertencia a uma família envolvida com a pintura e a arquitetura. O pai trabalhava com pintura em vidros e o irmão Pieter Post, que também era pintor, tornou-se um dos mais conceituados arquitetos da Holanda. Pouco se sabe da vida de Post antes de fevereiro de 1637 quando ele desembarcou no Recife acompanhando Maurício de Nassau. Tinha 24 anos de idade e provavelmente teria se aperfeiçoado na pintura com o seu irmão Pieter, mas ainda não era um nome destacado dentre os pintores dos Países Baixos.
Logo ao chegar a Pernambuco, Maurício Nassau iniciou ações para combater as forças de resistência que estavam reunidas em Porto Calvo e muito provavelmente Frans Post, que ficara encarregado de registrar as paisagens da região e que poderia ser considerado uma espécie de “repórter fotográfico” da expedição batava, deve ter acompanhado Nassau nas suas viagens. Para Pedro e Bia Corrêa do Lago, “Parece não restar dúvida de que Post, artista oficial, tenha acompanhado Nassau em todos os seus deslocamentos: a decisiva batalha de Porto Calvo no mês seguinte à sua chegada, a expedição à Paraíba e Rio Grande em 1638 [...]”.
A visita de Nassau à Paraíba ocorreu em fevereiro de 1638 e foi nessa viagem que Frans Post iniciou a produção de um óleo sobre tela de 61 x 87,3 cm denominado “Vista da Cidade Frederica na Paraíba”. A tela foi esboçada a partir da margem esquerda do rio Sanhauá tendo ao fundo a então chamada pelos holandeses Cidade Frederica (Frederikstaad, em homenagem a Frederico, o Príncipe de Orange). O quadro foi finalizado, meses depois, no Recife, considerando-se que na tela, além da assinatura F. Post consta a data da provável conclusão do trabalho: 1638/10/2(3).
Para Pedro Corrêa do Lago, “Frans Post não é importante apenas para o Brasil. Ele é um caso único na história da arte. Foi o primeiro europeu a pintar a paisagem dos trópicos”. A partir desta afirmação de um dos principais especialistas na obra de Post em todo o mundo, pode-se considerar que a tela “Vista da Cidade Frederica na Paraíba” foi a primeira imagem pintada conhecida das terras paraibanas. A importância da tela “Vista da Cidade Frederica na Paraíba” foi destacada pelo crítico e historiador de arte Souren Melikian que classificou o quadro de Post como uma obra-prima, acrescentando:
“Há algo de irônico no título ‘Cidade Frederica na Paraíba’ dado a esta pintura, na medida em que os únicos indícios de cidade são algumas pequenas casas no horizonte e outras um pouco maiores na beira do rio. Nenhum ser humano é visível. Duas árvores passam a ideia de uma visão do paraíso com seus frutos vermelhos e brancos [...]”
Durante a sua permanência de sete anos no Nordeste brasileiro, Frans Post pintou uma série de 18 óleos que foram levados por Nassau quando ele retornou, em 1644, para a Holanda. Essas telas permaneceram, por 35 anos na residência de Maurício de Nassau, em Haia, a Mauritshuis. Em 1679, ano do seu falecimento, Nassau encontrava-se doente e com dificuldades financeiras,
Cogitou-se de enviar o próprio Frans Post à França para fazer a apresentação das telas à Luís XIV, mas isso foi descartado pelas condições em que se encontrava o pintor naquele momento, conforme se constata por uma carta enviada a Nassau pelo seu agente financeiro: “se o velho Post, que ainda é vivo, fosse capaz, isso seria ótimo, mas tornou-se um bêbado trêmulo”. O conjunto de quadros foi afinal enviado à França sem nenhum acompanhamento e exibido inicialmente no Palácio de Versalhes. Depois que as imagens “brasileiras” deixaram de despertar a curiosidade dos franceses em Versalhes as telas foram, no decorrer dos anos, remanejadas para vários locais e alguns quadros desapareceram nas mudanças, entre eles a tela “Vista da Cidade Frederica na Paraíba”. Para o casal Corrêa do Lago:
“Ignoramos o que possa ter acontecido com a maioria dos quadros que desapareceram em cada um dos remanejamentos das coleções reais. É provável que vários tenham sido ‘subtraídos’ ao longo dos anos por funcionários pouco zelosos, vendidos clandestinamente ou simplesmente extraviados em depósitos oficiais, onde caíram no esquecimento e nem mesmo foram corretamente identificados. É provável também que alguns tenham sido destruídos por alguma catástrofe natural, inundação ou fogo.”
Durante muito tempo, o nome de Frans Post foi mais conhecido por 33 gravuras baseadas em desenhos que ele fez no Brasil e que foram incluídas em um livro publicado na Holanda em 1647 e que continua até hoje sendo reeditado. Ao voltar do Brasil, Nassau encarregou o escritor Caspar van Baerle, que se assinava de forma latina como Barlaeus, de escrever uma obra relatando os seus feitos durante o período em que governou o chamado Brasil holandês. Os desenhos nos quais se basearam os 18 óleos da produção “brasileira” de Post também entraram, com pequenas modificações, nas gravuras do livro de Barlaeus. No caso da gravura baseada no desenho que originou a tela “Vista da Cidade Frederica na Paraíba”, foi acrescentado um barco a velas e uma pequena embarcação com duas pessoas, além de um brasão que Nassau fez criar para o território da Paraíba.
No brasão, simbolizando a excelência do açúcar paraibano, aparecem seis “pães de açúcar”, como eram chamadas as fôrmas de formato piramidal feitas de barro e que eram usadas para o fabrico do produto. Para o casal Corrêa do Lago:
“O livro de Barlaeus é um monumento, e não apenas por suas dimensões (49 x 30 cm), mas também por suas pranchas e qualidade tipográfica. Tem lugar indiscutível entre os mais belos livros ilustrados do século XVII, e durante mais de 160 anos foi a única fonte fidedigna da paisagem brasileira disponível na Europa, pois todas as outras gravuras e ilustrações dos livros de viajantes eram realizadas a partir de suas descrições – e não por artistas que haviam observado a paisagem in loco.”
Do conjunto de dezoito telas “brasileiras” pintadas por Frans Post desapareceram onze e restam atualmente sete quadros. Para Pedro e Bia Corrêa do Lago, “os sete quadros hoje conhecidos deixam claro que a série completa dos 18 deve ter representado um dos conjuntos mais fascinantes entre os melhores que foram produzidos no século XVII”. Das sete telas preservadas conhecidas que foram pintadas por Frans Post no Brasil, quatro estão no museu do Louvre, em Paris, uma que foi localizada no final do século XIX está no museu Mauritshuis, na Holanda, e outra, que reapareceu nos anos 1920, é a única que se encontra no Brasil, no Instituto Ricardo Brennand, no Recife. O sétimo e último dos quadros “brasileiros” de Post que foi reencontrado tem uma história curiosa. Em outubro de 1996, a revista Veja publicava uma matéria com o seguinte título: “Tesouro revelado – Descoberta num castelo alemão uma paisagem nordestina pintada por Frans Post em 1638”:
“Ofuscado por uma moldura rococó, um pedaço da História do Brasil hibernava em meio à poeira havia pelo menos 150 anos num castelo da Baviera, no sul da Alemanha. Depois de passar pelo crivo dos especialistas da casa de leilões Sotheby’s, há poucos meses, agora não resta dúvida: o quadro é mesmo a paisagem A Cidade e o Castelo de Frederik na Parayba, de 1638, pintada por Frans Post por encomenda de Maurício de Nassau durante a invasão holandesa à costa nordestina no século XVII.”
A Veja encerrava a matéria com a esperança de que a tela de Post com a imagem da Paraíba, que passara quase dois séculos desaparecida, fosse adquirida por algum colecionador ou instituição brasileira: “o Brasil, que no ano passado perdeu para a Argentina a tela modernista ‘Abaporu’, de Tarsila do Amaral, tem agora uma chance de comprar um pedaço de sua História”.
Em 30 de janeiro de 1997, a tela “Vista da Cidade Frederica na Paraíba” de Frans Post foi leiloada na sede da Sotheby's, em Nova York, e vendida por quatro milhões quinhentos e doze mil dólares, ultrapassando em mais de cinco vezes a sua avaliação inicial. Nenhum ricaço ou endinheirado brasileiro se dispôs a pagar o valor e o quadro foi adquirido por uma colecionadora de arte da Venezuela. Atualmente, quem quiser ver presencialmente a primeira imagem pintada das terras paraibanas vai ter mesmo que ir a Caracas, pois a tela “Vista de Ciudad Frederica en Paraíba” de Frans Post faz parte do acervo da Coleção Patrícia Phelps de Cisneros na capital venezuelana.