Carlos Heitor Cony era um cético. Pelo menos, é o que a mim parece. Um cético, no sentido montaigniano mas sem a sutileza de Machado de Assis, talvez de propósito, para causar impacto no leitor. Suas crônicas me mostram isso. Uma certa descrença generalizada na humanidade e nas coisas do mundo, coisa típica de quem muito viveu, muito viu e não cultiva mais ilusões sobre nada nem ninguém. Cético, diga-se, a despeito do seminarista da infância – ou, quem sabe, por causa dele. E como descrê de tudo (ou quase tudo), o cético costuma ser iconoclasta, tem prazer em ser iconoclasta, destruidor de ídolos e de reputações, como se quisesse provar que ninguém é o que parece e que ninguém merece a estátua e o pedestal. Não à toa, um de seus livros se chama justamente Da arte de falar mal.
Talvez por conta do ceticismo, Cony era também um cínico, não no sentido de hipócrita, mas no de desavergonhado, ou seja, sem vergonha de chocar o leitor com pensamentos e frases não convencionais, não raro, parece-me, só pelo prazer de fazer graça. Tudo isso junto (ceticismo, cinismo e um estilo personalíssimo) fazia (e faz) dele um dos mais saborosos cronistas do Brasil, principalmente em seus últimos anos na Folha de S. Paulo.
Iconoclasta praticante, ironicamente terminou vestindo o fardão da Academia Brasileira de Letras, com direito a chapéu de plumas e reluzente espada. Uma curiosidade que tenho é saber o que, no mais fundo de si mesmo, ele pensava daquilo tudo. Mas, pelo visto, gostou, pois passou a frequentar o Petit Trianon com indisfarçado gosto, o que, mais uma vez, comprova a vitória final da vetusta senhora, a ABL, sobre seus detratores. E foi lá na ABL que se deu o fato a seguir resumidamente relatado, como convém.
Inicialmente, esclareço que colhi a história do próprio Cony, em crônica originalmente publicada na Folha e depois em livro. Como todo cronista, ele inventava muitas estórias, mas esta acredito que realmente aconteceu tal e qual foi por ele narrada. Muito bem. Corria a sessão de saudade em memória de Rachel de Queiroz. Ao final, Celso Furtado aproximou-se e indagou-lhe sobre a primazia que é atribuída a José Américo de Almeida e A bagaceira na inauguração do “ciclo regional nordestino de nossa literatura”. Uma curiosa pergunta, partindo de quem partiu, um notável paraibano de notório saber. Desconfiaria Furtado da relevância literária dada ao conterrâneo? Ou queria apenas confirmar, para seu eventual orgulho tabajara, o que historiadores e críticos há décadas sacramentaram? E por que perguntar a Cony, um escritor, e não a um crítico profissional, em tese mais autorizado para responder a indagação?
Mas o fato é que Cony respondeu ao economista, reafirmando o que dissera momentos antes em sua curta intervenção na sessão de homenagem à escritora cearense recentemente falecida. Para ele, Cony, o referido ciclo regional nordestino de nossa literatura “teve começo com O quinze, de Rachel, e não com a obra do Zé Américo”. E aí está certamente o porquê da pergunta de Furtado ao escritor carioca. O economista – e outros mais, imagino – deve ter se surpreendido com a tese de Cony, na contramão do que se tinha como estabelecido.
Para o autor de Quase Memória, “A bagaceira é regionalista em termos – somente em tema não em linguagem – e literatura nunca é tema, é linguagem”. E continua, implacável e afirmativo:
“A prosa de Zé Américo é até anterior à da Semana de Arte Moderna, de 1922, anterior à de Lima Barreto e até mesmo à de Machado de Assis, um autor basicamente do século XIX. Rachel foi realmente a primeira regionalista. O livro de Zé Américo seria pioneiro do ponto de vista sociológico, mas tivemos obras anteriores com a temática social e regional em primeiro plano, mas sem a linguagem correspondente”.
Vejam só. Usando um pouco da galhofa típica de Cony, para ele, pelo visto, a prosa de José Américo seria do século... XVIII.
Um pequeno detalhe cronológico: A bagaceira é de 1928 e O Quinze, de 1930. É possível, portanto, que a então mocinha Rachel tivesse lido o livro do paraibano enquanto criava sua obra inaugural. É possível até que tivesse, de alguma forma e em alguma medida, sido influenciada por José Américo. Mas isso são hipóteses – e hipóteses, hipóteses são. Para Cony, a primazia no regionalismo nordestino é de Rachel – e ponto final. Que os professores de literatura e os críticos literários o contestem – ou não. A matéria é para profissionais e não para amadores, como eu. A verdade é fiquei tão surpreso quanto Celso Furtado com essa talvez heresia.
Cony não conta a reação de Furtado à sua singularíssima tese. É possível que o paraibano tenha educadamente ouvido calado a opinião do colega acadêmico. Ou para não contrariá-lo ou porque, economista, não se sentisse autorizado a discutir sobre matéria estranha à sua área. É também possível que Furtado tenha comentado a resposta de Cony com Rosa Freire d’Aguiar, sua esposa, o que nos coloca novamente no terreno das hipóteses. Entretanto, seria interessante saber o pensamento do ilustre pombalense sobre isso tudo, ele que era a lucidez em pessoa, até por força do ofício.
Além de cético e de cínico (no bom sentido, repito), Cony era uma figura pitoresca por várias razões, inclusive esta de ter e proclamar inusitadas opiniões sobre autores e obras. Pois não é que ele também alegou que o famoso verso de Vinícius de Moraes “mas que seja infinito enquanto dure”, do igualmente famoso Soneto da Fidelidade, seria um possível (mesmo que involuntário) plágio de idêntico verso do poeta francês Henri de Régnier? Incrível, não é mesmo? Mais uma vez, com a palavra os especialistas. E como se não bastasse, o cronista deu curso a uma dúvida que mexe até com a história oficial do país: talvez não seja de Juscelino o corpo sepultado em Brasília no Memorial JK. Segundo ele, são “coisas que acontecem”. Pois pois.
Fico pensando: seria Cony um deliberado estraga-prazeres da literatura nacional? Ou apenas um gozador de alheias glórias? Iconoclasta como foi, pode muito bem ter sido ambas as coisas. Além de outras mais que a gente não sabe – nem desconfia.